Temas abordados nesta aula são aprofundados nos capítulos 5 (A Fuga do Aristotelismo) e 12 (De Sade a Nietzsche) do livro “Gilles Deleuze: A Grande Aventura do Pensamento”, de Claudio Ulpiano.
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A leitura de jornais ou dos textos sobre cinema dificilmente encontra alguma coisa que trate do que eu vou dizer aqui. E a falta de contato com temas do tipo [a ser exposto] torna [a nossa experimentação] difícil. É uma parte muito delicada… de um curso rápido, em que eu tenho que fazer as exposições e – como vocês sabem – são muito poucos os filmes [disponíveis] no Brasil – quase não temos nada para ver.
Bom!… Deleuze vai marcar, entre outros, a existência de três tipos de cinema-tempo, que ele chama – um, de cinema-corpo; outro, de cinema-pensamento; e, o outro, de cinema-cérebro. Em função desses três tipos de cinema, eu vou apontar apenas para o cinema-cérebro e para o cinema-corpo. No cinema-corpo, nós temos alguma coisa para ver – sobretudo o John Cassavetes… e o Godard: aí há o que se ver. No cinema-cérebro, só vou colocar o Stanley Kubrick. O Stanley Kubrick e esses filmes finais dele que tratam desse tema – que é o cérebro.
Aluna: O Godard é cinema do corpo!?
Claudio: É. Corpo.
E em terceiro lugar – e aí vem uma complexidade maior – [vem] o cinema-pensamento. Então, eu vou fazer uma exposição para a gente mergulhar nesses campos. Não há dificuldade de entendimento no que eu vou dizer, mas, devido ao [fato de] serem conceitos fora dos padrões normais de estudos que nós fazemos, provavelmente eles [irão] trazer uma pequena surpresa para vocês. Eu tenho que ser muito preciso em tudo… e um pouco rápido!
O homem tem nele um componente a que história deu o nome de subjetividade. E essa subjetividade – que é um componente do sujeito humano – se dá… dentro de um mundo físico. De outra maneira – quando a gente pensa os elementos capazes de nos darem entendimento sobre o que é o mundo, o que é a natureza, nós encontramos duas linhas – ou melhor, dois mundos, que na minha exposição se complementam – a objetividade e a subjetividade.
O que eu estou chamando de objetividade é o mundo físico. O que quer dizer mundo físico? Mundo físico é onde se dão todos os processos que são químicos, biológicos ou mesmo físicos, como se chama por aí… – processos [que] provavelmente vão trazer uma pequena surpresa para vocês: a erupção de um vulcão, o brilho de uma estrela, o fluir de um rio, uma pedra, a gravidade… Ou seja, a objetividade é constituída por um… um bloco…ela é um bloco de fatos, um bloco de ocorrências – ocorrências naturais: eclipses, chuva… tudo o que na linguagem cotidiana nós chamamos de natureza. É o mundo físico ou objetivo. E junto com esse mundo – entranhado com esse mundo – estaria a subjetividade.
O que eu chamo de subjetividade é qualquer ser vivo… Mas eu não vou me importar com qualquer ser vivo – vou me importar apenas com o homem.
Então, o homem é um ser que é constituído por uma estrutura psico-orgânica. Ele é um ser que tem um organismo e esse organismo tem uma psicologia – uma estrutura psicológica. Estrutura psicológica quer dizer o quê? O homem vê, sente, raciocina, imagina... Todas essas práticas… ver, sentir, falar, sonhar, etc… chamam-se subjetividade. A subjetividade é o exercício de uma estrutura psicológica. Essa estrutura psicológica marca a presença – no mundo – de um componente diferente da objetividade física. É essa subjetividade que gera os processos do sonho, da imaginação, da memória, do delírio, do raciocínio, da linguagem… Ou seja, o que eu estou chamando de subjetividade é alguma coisa que tem propriedades inteiramente suas: sonhar, dormir, falar, imaginar… – todas essas práticas são da ordem subjetiva.
A subjetividade é, então, alguma coisa voltada para o meio onde ela se dá – esse meio é o mundo físico. O meio onde ela se dá é o mundo físico. Por isso não há como [se] colocar de um lado a subjetividade e de outro lado a objetividade – elas estão entranhadas uma na outra. Elas estão entranhadas – não há possibilidade de um sujeito humano ou de uma subjetividade exercer a sua vida sem um território físico. É necessário que haja um território físico para que essa subjetividade exerça a sua existência. A partir daí eu vou chamar, tanto o mundo subjetivo quanto o mundo objetivo…
O que é o mundo objetivo? O mundo objetivo são os fatos físicos… – chuva, dia de sol, dia de chuva, calor, queda de uma pedra, a gravidade, um beijo… São esses os fatos físicos! E do lado de cá, os fatos subjetivos… – sonhar, dormir, acordar, falar, memorizar, lembrar… Então, esses dois mundos, um se chama objetivo, o outro, subjetivo – ou melhor – um se chama psicológico, o outro se chama físico. Mundo físico e mundo psicológico.
Se nós, hoje, em qualquer lugar do mundo, em qualquer lugar deste planeta, entrarmos numa universidade, o que há para estudar é ou o mundo subjetivo ou o mundo objetivo – haveria esses dois planos. Em primeiro lugar, o plano do subjetivo – que é o plano do psicológico; e o plano do objetivo – que é o mundo físico. Esse plano do psicológico se distribui em Sociologia, Antropologia, Linguística e… tudo que [leva o nome] de ciências humanas; e o plano físico é a Química, pode ser a Biologia, a Física, etc.
Então, o campo de saber de qualquer homem normal abrange os dois – os exercícios subjetivos e os exercícios físicos. Quando você encontra um homem [por nós considerado] um sábio, a sabedoria dele está constituída pelo conhecimento da subjetividade e pelo conhecimento da objetividade – o mundo físico e o mundo psicológico. E isso é invariável em qualquer lugar que vocês forem – dificilmente vai variar. Esse mundo subjetivo, por exemplo, gera duas práticas que são fundamentais para a vida do homem – a prática lógica e a prática matemática. Quer dizer – a lógica e a matemática se originam na subjetividade. E a suposição da subjetividade é de que o mundo físico – ao receber as práticas lógicas e matemáticas – se submeta a essas práticas… e o homem possa entender o mundo físico, utilizando lógica e matemática. Logo – a lógica e a matemática fariam parte da subjetividade.
Quando você vai estudar, você vai estudar lógica, matemática. E o que mais? Psicologia, Sociologia, Antropologia… [que] são ciências propriamente psíquicas – ciências da subjetividade. Agora, se você vai estudar Física, Química, etc…. – são ciências da objetividade. Em função dessa composição entre o subjetivo e o físico: entre os dois – como uma junção dos dois – estaria o cérebro...
Como junção dos dois estaria o cérebro – o cérebro seria o meio que o homem teria de voltar-se sobre si – enquanto estudante do psi; e voltar-se para o mundo físico. Então, no nosso mundo aparece uma prática chamada biologia do cérebro. Provavelmente, a biologia do cérebro é o mais desenvolvido dos estudos que nós fazemos [na atualidade].
Muito bem! Não haverá nenhuma surpresa para nós, se formos a qualquer região, não só deste planeta, mas a qualquer região deste universo e encontrarmos práticas teóricas, cinematográficas, artísticas que se refiram ao subjetivo e ao objetivo. Ficaremos inteiramente bem, se num planeta distante encontrarmos um mundo, não importa qual, em que o trabalho dele seja no subjetivo e no objetivo – nós vamos nos reconhecer! Por exemplo: o Deus cristão, ou melhor o Deus judaico-cristão – que é o deus que predomina no mundo ocidental – é um deus subjetivo.
O que quer dizer um deus subjetivo? Ele é constituído com os componentes que constituem uma subjetividade. Ou seja, se você está estudando subjetividade e objetividade, esse deus faz parte da subjetividade. O Deus judaico-cristão é, como eu, uma… pessoa. Então… Ele tem inteligência, Ele tem vontade. .. o Deus judaico-cristão possui todos os mecanismos que existem numa subjetividade comum – [de um modo] um pouco diferente. Então, incluir Deus no estudo da subjetividade e da objetividade não quebra o esquema que eu coloquei para vocês – nós continuamos no interior do esquema da subjetividade e do esquema da objetividade. A subjetividade é o psicológico, a objetividade é o físico. E nós teríamos esse mundo aí… (Tá?)
O primeiro momento, um pouco difícil, aparece agora. O mundo psicológico se constitui por dois elementos – que eu vou chamar de forma e conteúdo. A memória, por exemplo, é uma prática subjetiva. Logo, a memória é uma forma da subjetividade. [Também] a inteligência é uma forma da subjetividade, e a imaginação é uma forma da subjetividade. [E] toda forma implica em conteúdo.
Quando eu utilizo a forma memória, essa “forma memória” apreende um conteúdo qualquer… e esse conteúdo é chamado de – antigo presente.
Quando eu utilizo a forma inteligência, essa “forma inteligência” utiliza um conteúdo – que são as estruturas racionais, as estruturas lógicas ou as estruturas matemáticas.
Quando eu utilizo a forma imaginação, essa “forma imaginação” lida com um conteúdo – que são imagens soltas.
Então, sempre que a subjetividade entra em funcionamento, ela produz uma forma e um conteúdo. Sempre uma forma e um conteúdo. E no mundo físico é o mesmo processo – não há diferença nenhuma: você tem a forma física, a forma química, a forma biológica e os conteúdos químicos, os conteúdos físicos e os conteúdos biológicos. Então, nós teríamos, tanto no físico como no psicológico, tanto no subjetivo quanto no objetivo [pequeno defeito na fita] … a memória é forma da subjetividade.
Todas as formas se dão na dimensão do tempo presente. (É muito difícil isso!). Quando você encontra uma forma subjetiva ou quando você encontra uma forma objetiva, essas formas aparecem, mas só aparecem na dimensão presente. Elas se dão somente no presente do tempo. Essas formas, aparecendo no presente do tempo, se chamam atuais. Então, a subjetividade humana é inteiramente atual. O que quer dizer – inteiramente atual? Ela está sempre no presente do tempo. E o mundo físico ou o mundo objetivo é a mesma coisa – está sempre no presente do tempo. E tudo o que está no presente do tempo chama-se atual. Então, esse copo é atual. O sonho que estou tendo agora também é atual – então não há distinção de atualidade entre um fato psicológico e um fato físico. Basta que aqueles fatos se dêem no presente do tempo para serem chamados de atuais. Atual significa estar no presente do tempo.
(Vamos outra vez:)
Se no cinema ocorre uma prática – como o flashback, por exemplo. O flashback vai buscar, no passado, alguma coisa que não está no presente. Mas... o ato do flashback… se dá no presente – ele se dá no presente! O ato de memorizar se dá no presente. Então, sempre que nós entrarmos em contato com o mundo psicológico e com o mundo físico, nós estaremos… – e este é o enunciado fundamental – …estaremos sendo governados pela dimensão presente do tempo. E esta dimensão – presente do tempo – é estruturada pelo que se chama linha histórica. Então, o psicológico e o físico – dentro da natureza – se processam como sendo uma linha histórica.
(Como é que vocês foram? Coloquem, se houver problema!)
A noção de atual é a noção [basilar] do mundo físico: jamais um ser físico ou um ser psicológico pode aparecer fora do presente do tempo – jamais! Ele tem que estar no presente do tempo. Se eu – por exemplo – vou me lembrar, eu me lembro no presente: eu me lembro de alguma coisa do passado, mas eu estou no presente. Quando aquela coisa de que eu estou me lembrando aparece… – ela vira presente. Ou seja, todas as nossas práticas psicológicas ou subjetivas (como estou colocando) – se dão no presente do tempo. Todas as práticas do mundo físico – se dão no presente do tempo.
(Se vocês acham que foi suficiente… ou não… eu faço um investimento um pouco diferente, para que vocês me digam que deu para entender.)
Eu vou repetir:
Jamais a nossa estrutura psicológica sairá do presente do tempo – jamais! Quando eu sonho – o ato de sonhar se dá… no presente. Quando uma pedra cai – [a queda] se dá no presente. Quando eu me recordo – [o ato de recordar] se dá no presente. Não há sequer um elemento da estrutura psicológica ou da estrutura física que não esteja no presente do tempo. Por isso, eu vou identificar a objetividade e a subjetividade como pertencentes ao que se chama mundo atual.
É o mundo atual. Esse mundo atual – tanto o subjetivo quanto o físico – é coordenado pelas linhas lógicas da história. Ou seja, as regras que comandam o mundo atual – presente – da psicologia e do mundo físico – são as regras da coerência lógica do histórico. Coerências lógicas do histórico!
Quando, por exemplo, vocês vêem um faroeste, ou mesmo um filme naturalista – não importa; quando vêem um filme do Hitchcock – pouco importa… – todos esses filmes são governados pela presentificação do psicológico e a presentificação do mundo físico. Ou seja: é um cinema que – pelo menos supostamente – se desenrola no presente do tempo. Aí vocês perguntam: “mas não pode [haver] um flashback se [dando] no passado?” Pode… mas quando aquele flashback se dá, ele se dá no presente: no presente antigo! Tudo que se dá nesse cinema se chama atual – é o universo do atual.
Claudio: Foi bem para vocês ou [há] problemas?
Aluno: Estou pensando na Psicanálise…
Claudio: O que é que tem a Psicanálise?
Aluno: Em relação à [trecho inaudível] atualização, esse presente do tempo?…
Claudio: A Psicanálise… eu não vou examinar a Teoria da Psicanálise, mas… qualquer prática que o psicanalista fizer é uma prática que se dá no presente do tempo. Não tem como sair: é psicológico, é físico – está preso no presente do tempo. Não tem como sair: é uma regra da psicologia e é uma regra do mundo físico.
Então, eu vou produzir um enunciado – um enunciado teórico poderosíssimo – e ver se vocês entenderam. Se não, eu vou retornar e tentar explicar novamente.(Tá?)
Nessa tese, o presente – a dimensão presente – preenche todo o tempo. Só há o presente do tempo! (Se vocês entenderam, tentem me perguntar.) Não há outra dimensão do tempo: no mundo psicológico e no mundo físico só existe o presente.
Aluno: Mas, então, – Claudio, eu não tenho passado?
Claudio: Tem. Mas o seu passado é um antigo presente. Você tem assim: antigos presentes, presentes atuais e presentes que vão chegar. Tudo é presente! O presente preenche tudo! Você não encontra nada no mundo objetivo e no mundo subjetivo que não seja atual. E o atual é sempre presente. Então, quando você está – não importa se no cinema, na ciência ou na arte – lidando com a psicologia… ou melhor, lidando com o subjetivo, lidando com o objetivo, você está lidando com a atualidade do presente do tempo. Tudo isso é governado pelo presente do tempo. E o melhor enunciado, o enunciado que conclui, é que o presente preenche todo o tempo. O tempo [é] preenchido… somente pelo presente. Ou melhor, agora, quando eu falo atual, essa expressão atual é sinônimo de presente no tempo. Tudo que é atual é presente no tempo! Tudo que é atual é presente no tempo! Tudo que for psicológico e for físico, tudo que for subjetivo e objetivo é presente no tempo!
(Vou dar por mais ou menos completo)(Tá?).
(Porque é aqui que começam a aparecer as originalidades… Eu vou ser lento… mas vou dar um exemplo para vocês.)
Se eu estou dizendo que atual é sinônimo de presente no tempo, se eu falar passado e futuro… – o passado e o futuro são inatuais. Atual é só o presente no tempo. Não existiria no mundo da psicologia e no mundo físico outra dimensão do tempo que não fosse presente.
(Eu sei que alguns de vocês, que não estão acostumados a ouvir isso que eu estou falando estão com dificuldade. Mas é uma experimentação muito simples para compreender o que estou dizendo.)
Toda e qualquer atividade psicológica que nós tivermos se dá no presente do tempo. Qualquer atividade psicológica que nós tivermos… – necessariamente, tem que se dar no presente do tempo. E qualquer atividade física também se dá no presente do tempo. Então.. o presente do tempo é a atualização da subjetividade e da objetividade. O presente do tempo atualiza a subjetividade e atualiza a objetividade. (Certo?)
(Agora eu vou começar uma marcha… – uma marcha crítica. E durante pelo menos umas duas aulas, eu vou ficar nessa marcha crítica. A marcha crítica, por exemplo… – eu vou produzir apenas um enunciado! O enunciado vai produzir a primeira linha de… fuga.)
É Kierkegaard – um filósofo dinamarquês. E ele tem uma expressão incrível! Ele usa a palavra alma e diz assim: “a minha alma não é nem psicológica nem física”. Não é nada, é um enunciado – “a minha alma não é psicológica nem física”. Mas se a gente levar em consideração o que Kierkegaard está ensinando, ele está dizendo alguma coisa surpreendente! Ele está falando de um tipo de ser que não está nem na subjetividade, nem na objetividade – que seria a alma. Ele estaria constituindo alguma coisa fora da subjetividade, fora da psicologia; fora da objetividade, fora da física… E – mais grave do que isso… – ele estaria produzindo alguma coisa que não seria atual, que seria inatual. Está produzindo alguma coisa muito surpreendente. (Eu sei que ainda está difícil…) Porque a expressão que ele usou, foi uma expressão que parece ser tirada dos interesses dele – embora não seja. Ele diz que há dentro dele alguma coisa que ele chama de… alma – que não é nem subjetiva nem física. É isso que ele diz! E se não for nem subjetiva nem for objetiva, aí nós já sabemos de alguma coisa – não é atual… não é atual. Mas… deixa o Kierkegaard para lá… Porque, por enquanto, ele ainda não pode nos ajudar muito.
Mas aí eu pego um pensador mais próximo de nós – que é o Bergson. E o Bergson, na obra dele, vai trabalhar com o conceito de inconsciente. E esse conceito de inconsciente é um conceito charmoso e vitorioso no século XX, (não é?). Ele é um conceito tão poderoso como foi, por exemplo, o conceito de luta de classes. No século XX, esse conceito de inconsciente foi um conceito poderosíssimo. A luta de classes “abaixou um pouco a crista”, mas o conceito de inconsciente permanece – com um poder muito grande – ainda no século XX.
Aluno: Está substituindo este conceito de inconsciente pela subjetividade?
Claudio: Não ouvi… Deixa eu concluir, para você poder entender. Deixa eu concluir.
Este conceito de inconsciente, pego pelo Bergson e pego pelo Freud, quer dizer, os dois – Freud e Bergson – falando sobre o inconsciente:
Quando Freud fala de inconsciente, ele diz que o inconsciente é uma estrutura psicológica. Então, para o Freud, o inconsciente pertence à subjetividade, pertence à psicologia. Bom! Já é alguma coisa. Pelo menos para o Freud, o inconsciente não pertence ao mundo físico, pertence à estrutura psicológica: para o Freud, ele é subjetivo. Então, a psicologia, para o Freud, ou a subjetividade humana, para o Freud, tem, como se diz, dois topos, dois lugares – a consciência e o inconsciente – ambos pertencendo à estrutura psicológica. E pertencendo à estrutura psicológica, ambos vão manter a posição de atualidade – ambos são atuais.
Agora…
Quando Bergson fala do inconsciente, ele vai introduzir uma incrível surpresa. Ele diz: – “O inconsciente não é psicológico”. Quando ele diz [que] o inconsciente não é psicológico – imediatamente o homem tradicional do ocidente diz – o quê? Se não é psicológico é… é o quê? Físico! – ele [responde] imediatamente. Porque só teríamos estas duas regiões – a região do físico e a região do psicológico. [Bergson] diz: – Não, não é psicológico… mas não é físico. Ele diz isso – não é psicológico e não é físico.
Nós temos uma saída aqui – se eu reduzo o psicológico e o físico ao atual… e projeto um conceito e esse conceito não se aplica nem ao psicológico nem ao físico… – evidentemente que esse conceito não é atual. (Não sei se foi bem assim).
Então, eu vou chamar… nessa entrada, nesse percurso difícil que nós estamos fazendo… eu vou chamar… – para vocês verem a grandeza do que é o cinema: o cinema é uma coisa admirável!. .. – nesse percurso que nós estamos fazendo, muito tenuamente, pelo Bergson e pelo Kierkegaard, nós encontramos dois conceitos – ambos inatuais – inconsciente no Bergson; e alma no Kierkegaard. Seriam inatuais – não seriam nem físicos nem psicológicos; nem subjetivos nem objetivos. (Tá?) Agora...
Há uma imediata consequência do que eu disse: esse inconsciente do Bergson e essa alma do Kierkegaard, se elas não são nem subjetivas nem objetivas… – elas não são atuais. Não são atuais; logo, elas não estão… no presente do tempo: são inatuais... – são inatuais.
Vamos levar os dois a sério. Vamos levar o Bergson e o Kierkegaard a sério. Eu – como pesquisador – estou acostumado a lidar com a subjetividade… e a lidar com a física, com a objetividade. E ao lidar com esses dois – eu lido com o presente do tempo. Mas, se eu aceitei o Kierkegaard e aceitei o Bergson… e vou agora avançar na alma e no inconsciente... – eu tenho que mergulhar nos abismos do tempo. Eu saio do presente do tempo e mergulho no abismo do tempo…. – porque eu mergulho no inatual.
Alguma coisa de surpreendente está começando a acontecer! Está começando a acontecer a presença de um componente que não faz parte nem da subjetividade nem da objetividade. Ou seja – um filósofo com o conceito de alma sai da psicologia e sai da física. O outro – que é o Bergson – com o conceito de inconsciente que, pelo que vocês estão vendo, nada tem a ver com o conceito de inconsciente do Freud… Porque [este] inconsciente do Freud pertence à psicologia – é [o inconsciente] psicológico. O conceito do Bergson não é psicológico. Então, foi lançada – [e é o] que me importa – uma nova região – a região do inatual. (Tá?)
A região do inatual...
Nós não sabemos nada sobre esse inatual. .. Sabemos, [apenas], que Bergson e Kierkegaard falaram alguma coisa sobre isso. Sobre esse inatual. .. – [para o qual] eu vou dar três nomes. Eu vou lançar três nomes para ele, para ele… o inatual. São três nomes pedagógicos, quer dizer – por onde eu posso começar a fazer vocês entenderem. Eu vou usar os nomes de possível, virtual e provável. E dizer que o possível, o virtual e o provável – não seriam componentes do que se chama mundo atual.
Possível, virtual e provável. (Vamos ver o que é isso, tá?).
Eu disse que os conceitos de inconsciente e de alma – do Bergson e do Kierkegaard – estariam fora da subjetividade e da objetividade. Estando fora da subjetividade e da objetividade – são inatuais. Imediatamente eu arranjei três tipos de inatualidade. Os três tipos são o possível, o virtual e o provável. Seriam três tipos de inatualidade.
* – Estou um pouco sem ar!…
(O nosso processo ainda é muito iniciante. Talvez até o fim da aula a gente tenha crescido um pouco, viu?)
Vou dar para vocês um exemplo de provável.
O provável é atual? Não é atual. Você pega dois dados… pega dois dados. Dado – todo mundo sabe o que é [um dado], não? O dado tem seis faces, seis lados (Tá?). Você bota cinco pontinhos [em] cada lado de [um dos dados]… – então, cada lado dos seis lados do dado tem cinco pontinhos, cinco… – em cada lado, de um dos dados. E no outro dado, cinco lados têm o número cinco e um lado tem o número um. Um dado tem seis lados com cinco… e o outro dado tem cinco lados com o número cinco e um lado com o número um. Antes de eu jogar os dados eu sei de alguma coisa – que é mais provável dar dez do que seis.(Entenderam?) O dez e o seis – que são mais prováveis – ainda não são atuais. São prováveis, mas não são atuais. Então, a probabilidade… – é muito nítido o que estou dizendo… -…a probabilidade é um modo de nós pensarmos tanto a subjetividade como a objetividade como sendo reguladas pelo caos. O que quer dizer isso? Dizem os biólogos que, se eles fossem fazer uma composição da possibilidade do nascimento da vida nesse planeta, a possibilidade era de um para um trilhão – e ainda assim a vida apareceu. Logo, o campo da probabilidade abre para nós o caos.
O que quer dizer o caos? Quer dizer que você não sabe o que vai acontecer – você só tem uma probabilidade.
A ciência do século XX, modelada pela física quântica, trabalha nesse campo da probabilidade. É mais provável que A seja A, do que A não seja A. A partir desse mundo da probabilidade – nós nunca faremos uma afirmação… não faremos uma afirmação absoluta – nós faremos sempre [afirmações] em torno da probabilidade. Então, essa noção de provável… – nitidamente – não é atual. Enquanto os dados estão sendo balançados por mim… – eles não são nada atuais. Eles só se atualizam na hora que caem – mas antes de caírem eu já tenho a probabilidade deles. (Certo?) Então é mais provável que em 100 mil anos… é mais provável que em 100 mil anos um cometa se choque com o planeta Terra, do que não [se choque]. Por isso, vai ser necessário, para a humanidade, um dia mudar de planeta. (Entenderam?) A humanidade tem de mudar de planeta, senão vai acabar! O que é mais provável que ocorra – que um cometa se choque com o planeta Terra num período aí de 100 mil anos. Então, a probabilidade é um elemento nitidamente inatual. E sendo inatual, não está no presente do tempo – e está fora da subjetividade e fora da objetividade. Está fora dos dois.
Os grandes artistas do cinema-tempo – à semelhança desse exemplo ainda muito simplório que eu dei, da probabilidade, dos dados – todos os grandes artistas do cinema-tempo vão produzir um cinema em que a dimensão do tempo está fora do tempo atual. Eles vão produzir um cinema fora da dimensão atual. Eles vão sair da dimensão atual. Então, o exercício de cineastas do tipo Robbe-Grillet, Orson Welles, do próprio Cassavetes… é uma quebra da dominação do psicológico e do físico, da subjetividade e da objetividade. Eles vão mergulhar numa terceira região. Essa terceira região, que não é subjetiva nem objetiva, dentro da linguagem de dois grandes pensadores do século XX, dois pensadores formidáveis do século XX – um, Michel Foucault e o outro, Maurice Blanchot – chama-[se] “fora” ou dehors, em francês. O “fora” – ou seja – alguma coisa que não pertence ao psicológico nem ao físico. Alguma coisa que não pertence à subjetividade e não pertence à objetividade – que, conforme eu expus para vocês – no Kierkegaard chama-se alma e, no Bergson, chama-se inconsciente.
O que está acontecendo é que, se o cinema tenta se construir fora do presente do tempo… se o cinema quer produzir um cinema que não é o cinema atual – o cinema está experimentando o inatual. Ele está fazendo uma experiência no inatual. Ou seja, está fazendo uma experiência no que eu chamei de abismo do tempo. Está mergulhando no tempo! Mergulhar no tempo é sair da região da subjetividade e da objetividade – ou melhor, é sair do cinema psicológico e do cinema histórico. Você abandona essas duas linhas de cinema. Abandona essas duas linhas de cinema e todas as ramificações que esses dois tipos de cinema vão possuir.
Aluna: [trecho inaudível] um pouco assim do fora…?
Claudio: Eu estou tentando… Todo o meu objetivo é tentar falar alguma coisa sobre essa terceira região para vocês.
Quando nós…
Todo o meu objetivo – é o que eu respondi para ela – é falar… – [sem utilizá-los] – da alma do Kierkegaard, do inconsciente do Bergson, ou do fora do Blanchot e do Foucault. Todo o meu objetivo é esse! Porque este fora, este inconsciente e esta alma estarão presentes – não como inconsciente, não como alma e nem como fora – estarão presentes em vários filmes, em vários cinemas… Por exemplo… vocês podem ver [um] filme maravilhoso [do] Wim Wenders, que está passando aí – [uma] verdadeira beleza, [uma] verdadeira obra prima do cinema – ele é magnífico! É uma experimentação nisso que eu estou falando.
Então, eu vou tentar…
Eu acho que consegui assim uma certa disposição de temas que [me darão] meios para falar dessa terceira instância novamente – que se chama fora em Foucault, fora em Blanchot – pode ter alguém que estude literatura aqui – fora ou dehors em francês, que em Bergson se chama inconsciente e em Kierkegaard, alma.
Vou fazer uma narrativa para ver se vocês apreendem isso… – e todas as consequências que vão… ocorrer. Consequências que [fazem com que] o homem comum – que só lida com a subjetividade e com a objetividade… – [ao] se depara[r] com [o] que vou falar para vocês, mergulhe no caos e no aturdimento. E quando eu falo do homem comum, eu estou falando da universidade planetária – a universidade é feita para o homem comum. Por isso, ela lida sempre com a subjetividade e com a objetividade.
Então, na primeira experimentação do que eu estou falando…
Na filosofia antiga, na filosofia grega, quando os filósofos pensavam o tempo… quando eles pensavam o tempo, eles consideravam o tempo um componente do mundo físico. O tempo era pensado como cosmologia… como astronomia ou, pode botar… como astrologia. O tempo era um componente do mundo físico. Ou seja, o mundo físico possuía dois tipos de componentes – o tempo e o movimento. Você teria então o mundo antigo todo governado por essas regras.
Por enquanto, como estou colocando para vocês, [de modo] muito simples – não estou fazendo nenhuma teoria especial… Eu estou apenas dizendo:
Se vocês forem ler Aristóteles, se vocês forem ler Platão, se vocês forem ler os descendentes imediatos desses dois filósofos… Eles – ao falarem do mundo do tempo – dirão que o tempo é uma entidade física, é uma entidade da objetividade. (Certo?) Uma entidade que pertence à objetividade.
Agora, se nós passarmos para o Século V d.C. e encontrarmos um pensador chamado Santo Agostinho… – a grande viragem que o Santo Agostinho vai fazer – ele vai tirar o tempo do mundo físico ou do mundo objetivo e botar o tempo no mundo subjetivo. Ele tira da objetividade e coloca na subjetividade. Então, a grande prática de Santo Agostinho foi ter interiorizado o tempo. Ele [o] interiorizou. Tirou[-o] do mundo objetivo e [o] colocou no mundo subjetivo. Ele [considerou] que o tempo não era propriamente cosmológico – o tempo seria propriamente psicológico. (Isso numa entrada grosseira – para a gente compreender o que está se passando aqui).
Esses dois procedimentos são fáceis de serem entendidos. Porque quando a gente pergunta sobre o tempo e identifica o tempo ao mundo físico, é muito fácil! Quer dizer, a Terra gira em torno do Sol em 24h… (não é isso?) Não, em torno do Sol é em um ano (não é?). Então, nesse giro que ela faz, o tempo aparece…
[virada de fita]
Lado B
[BERGSON]
[trecho inaudível] é uma entidade da psicologia, é uma entidade da subjetividade… Até que, na evolução e no progresso da sua teoria – esses dois conceitos são dois conceitos extraordinários: evolução e progresso de uma teoria – ou no desenvolvimento da sua teoria, ele começa a libertar o tempo da subjetividade. Ele começa a tirar o tempo da subjetividade – mas não joga o tempo de volta para a objetividade. Na hora em que [ele faz] esse movimento [de] retirar o tempo da subjetividade e não jogá-lo de volta para a objetividade, ou seja – não fazer a mesma prática que a filosofia grega teria feito… – ele cria o conceito de virtual. E o conceito de virtual vai ser a chave para o nosso trabalho.
Virtual não quer dizer subjetivo nem objetivo. O virtual é alguma coisa fora da subjetividade e fora da objetividade. Ele não é nem subjetivo nem objetivo. Então é como se o Bergson criasse, inventasse… Vamos dizer… se o Bergson fosse um cosmólogo, ele estaria colocando, entre a Terra e a Lua, um terceiro planeta. O Bergson está fazendo isso. Ele está colocando fora do subjetivo e fora do objetivo, uma entidade que ele chama de virtual. Esse virtual é sinônimo, de… – segundo ele… – tempo puro. É difícil, nesse momento… O que nós sabemos é que o Bergson não vai concordar com o Aristóteles desta aula – porque para o Aristóteles o tempo é físico…. – não vai concordar com Santo Agostinho desta aula – porque para Santo Agostinho o tempo é psicológico… E ele vai dizer que o tempo está fora da subjetividade e está fora da objetividade. Por isso é inatual. E ele vai dar o nome de virtual. (Vamos tentar entrar nesse mundo, certo?)
Então, o meu esforço é tentar penetrar, quase que do mesmo modo que o Deleuze e os grandes pensadores de cinema vão fazer com o tempo. Ou melhor, o conceito de virtual, a ideia de virtual exclui, para a sua compreensão, os componentes do subjetivo e os componentes do objetivo. Se nós quisermos entender o virtual – e nós vamos tentar entender – nós não poderemos nos servir nem do subjetivo nem do objetivo.
(Agora, vamos penetrar…)
A nossa subjetividade é uma estrutura preparada para se efetuar e se atualizar no mundo físico. Quando você encontra um homem – [você verifica que] ele atualiza a existência dele no mundo físico. A estrutura subjetiva dele é toda voltada para dar conta do mundo físico. Essa estrutura subjetiva vai receber o nome de esquema sensório-motor. O esquema sensório-motor é a estrutura que qualquer subjetividade possui. [Qualquer subjetividade] possui [essa estrutura]… E essa estrutura tem um objetivo. O objetivo é efetuar a existência de um ser psico-orgânico no mundo físico. (Vocês entenderam esse enunciado?) Efetuar a existência de um ser psico-orgânico no mundo físico. Isso se chama esquema sensório-motor. Então, se por exemplo, o Gary Cooper está com o esquema sensório-motor deficiente, o Lee Marvin mata ele. O esquema sensório-motor é o componente fundamental do cinema chamado realista ou do cinema naturalista. O esquema sensório-motor é fundamental [nesses tipos de filmes]. Você tem que estar com esse esquema sensório-motor inteiramente preciso, funcionando das maneiras mais perfeitas possíveis. Em Janela Indiscreta, Por exemplo, o Hitchcock leva o esquema sensório-motor a uma crise – por causa de uma perna quebrada. (Todo mundo viu esse filme?) Uma perna quebrada força o James Stewart a não poder agir, [a] só pode olhar – ele só pode olhar. Só podendo olhar e não podendo agir… – [Vejam] o que ocorre, hein? É muito difícil o que eu vou dizer! -…ele quebra o vínculo que ele tem com o mundo.
O vínculo que nós temos com o mundo é um vinculo de ação e reação. O mundo aparece para nós – para nós agirmos sobre ele e reagirmos sobre ele. Se você tem duas pernas quebradas ou uma perna quebrada – que ele quebra a segunda no fim do filme – o que entra em crise é o vínculo com o mundo. O seu vínculo com o mundo entra em crise. Então, quando o Hitchcock quebrou a perna do James Stewart, o objetivo dele era mostrar os vínculos que a subjetividade faz, com a objetividade em crise. Isso, no Hitchcock, vai ganhar mais força no filme Um corpo que cai – vocês viram Um corpo que cai? Vertigo? James Stewart, Kim Novak! – Nesse filme, o James Stewart é um policial que, quando sobe uma escada, [por exemplo], fica tonto. [Ele] fica inteiramente paralisado, fascinado. Então – na hora em que ele fica paralisado – o vínculo sensório-motor se quebra, o vínculo que ele tem com o mundo. Aquilo se quebra.
(Então, anotem essa noção que eu estou dando…)
Quando alguma coisa ocorre no nosso esquema sensório-motor – uma perna quebrada ou uma fascinação ou fobia pelas alturas – gera uma quebra de vínculo. Quebra o vínculo – o vínculo com o mundo. Porque o vínculo com o mundo é você estar permanentemente agindo e reagindo sobre o mundo. Isso que é o vinculo que nós temos e que o cinema realista nos deu com integral perfeição – que é essa vinculação.
(Muito bem!)
O Bergson – que não conheceu o cinema como nós conhecemos – vai se envolver com o que eu chamei de esquema sensório-motor. O meu esquema sensório-motor está todo preparado para se vincular ao mundo… para se vincular perfeitamente ao mundo E [o Bergson] vai dizer uma coisa muito surpreendente: ele vai dizer que há momentos no esquema sensório-motor… [em que há] uma ocorrência chamada paramnésia. Paramnésia quer dizer – déjà vu.
O que é o déjà vu? O déjà vu é difícil!… É quando você apreende um objeto – este copo que está aqui [Claudio mostra um objeto como exemplo] – você apreende este objeto simultaneamente com as forças da percepção… – ou seja, quando você apreende um objeto com as forças da percepção, aquele objeto está no presente do tempo – e, simultaneamente, você apreende o mesmo objeto com as forças da memória – e quando você apreende um objeto com as forças da memória, aquele objeto está no passado. Então, na paramnésia, nós vamos apreender um objeto e colocar [uma] metade no passado e a outra metade no presente.
(Vocês entenderam?)
Aluno: Não…
Claudio: Quem não entendeu? Você nunca teve isso que eu chamei de déjà vu? O déjà vu é isso… O déjà vu é quando você apreende uma coisa e para você aquela coisa está simultaneamente no presente e no passado. É isso que é o déjà vu. Eu já vi isso. Eu já vi esse fato que está aí. – vamos botar esse copo que fica fácil… Esse mesmo copo está sendo apreendido pela percepção – porque a nossa percepção apreende as coisas que estão no presente; e está sendo apreendida pela memória. Ou seja: este copo [simultaneamente] está sendo passado e presente. (Está bem assim?) Ele é o passado e o presente simultâneos. Agora, a paramnésia é uma patologia do esquema sensório-motor. Patologia é uma doença – é uma doença do esquema sensório-motor. Agora, o Bergson – como os grandes pensadores da psicologia -, quando encontra uma patologia do esquema sensório-motor, ao invés de desconsiderar essa patologia, ele considera fantasticamente essa patologia. Porque ele vai dizer que a paramnésia, que é uma patologia do esquema sensório-motor, libera o nosso sensório-motor das estruturas orgânicas do nosso corpo. Ou seja, nós entramos em contato com o mundo governado pela nossa estrutura orgânica. No momento em que há uma crise na nossa estrutura orgânica e [nela] aparece uma patologia, ela passa a desfuncionar, a se tornar patológica. E nós apreendemos o mundo dessa maneira: o mundo sendo simultaneamente passado e presente.
Aí o Bergson diz:
Quando isso ocorre, esse passado e presente que aparecem para nós… [isso] não é uma projeção da nossa psicologia – é o tempo como ele é. É o tempo como ele é. Ou seja, o Bergson acabou de dizer – eu sei que está sendo difícil!… O Bergson acabou de dizer que o tempo são dois jorros simultâneos – o jorro do presente e o jorro do passado.
Ficou muito difícil? O que aconteceu…
Claudio: Fala!
Aluno: [trecho inaudível]
Claudio: Eu falei jorro, é isso?
Aluno: [trecho inaudível]
Claudio: É… O tempo… que nós… Quando nós apreendemos o mundo, e o nosso esquema sensório-motor está perfeito… Veja bem: o nosso esquema sensório-motor está perfeito… (Tá?) Aí eu tenho a percepção… a minha percepção apreende este copo… aprendeu este copo… aí daqui a pouco eu quero me lembrar deste copo, aí a minha memória se lembra deste copo. (Certo?) Este copo foi apreendido pela minha percepção no presente atual… e apreendido pela minha memória no presente antigo. Agora, quando vem a patologia do esquema sensório-motor, as coisas nos aparecem simultaneamente no presente e no passado. Ou seja, a paramnésia gera algo altamente estranho – que é a simultaneidade do presente e do passado. A paramnésia produz o passado e o presente simultâneos, enquanto que a nossa estrutura normal produz o passado e o presente sucessivos. E a paramnésia produz simultâneos. Aí o Bergson diz a coisa mais notável do mundo – a paramnésia nos dá o tempo como ele é. Enquanto que as nossas estruturas orgânicas… o nosso esquema sensório-motor projeta o tempo orgânico sobre o mundo.
Nós projetamos o tempo orgânico sobre o mundo. Na hora em que o esquema sensório-motor se quebra, aparece o tempo como ele é! O Deleuze chama de tempo cristalino.
Então, nós teremos aqui dois tempos: o tempo da estrutura sensório-motora em seu funcionamento perfeito; e o tempo da estrutura sensório-motora alterada. Essa alteração do esquema sensório-motor faz aparecer a coisa mais incrível que poderia aparecer… – É difícil o que eu vou dizer!… – Vai aparecer esse objeto simultaneamente no presente e no passado – mas o passado em que ele aparece nunca foi presente. Ou seja, a paramnésia está gerando alguma coisa de uma estranheza brutal – que é um passado que nunca foi presente. Porque, quando nós estamos com o nosso esquema sensório-motor absolutamente normal, o passado que nós apreendemos é um passado que foi… – que já tinha sido presente. Ou seja – todo passado que o esquema sensório-motor apreende é um antigo presente. É sempre o antigo [presente] que a nossa memória apreende. Mas, no processo do déjà vu, no processo da paramnésia, o que aparece para nós são dois jorros do tempo – o presente e um passado que nunca foi presente. (Vocês entenderam?) Um passado que nunca foi presente! Esse presente... ele vai receber o nome que já tinha recebido antes – atual; e o passado que nunca foi presente chama-se virtual.
Então, o passado que nunca foi presente é que se chama virtual. Virtual quer dizer o quê? Quer dizer uma imagem do tempo que não é atual. Uma imagem do tempo que não é atual! Eu não posso dizer muita coisa aqui para vocês. Mas posso dizer… – e [se] vocês esperarem… – que quando você tem a imagem atual do tempo, essa imagem atual do tempo, dada pelo presente, é uma imagem indireta do tempo. Quando você tem a imagem virtual do tempo, você tem a imagem direta do tempo. Então, a paramnésia nos daria… nos faria aparecer alguma coisa que a estrutura… que o esquema sensório-motor estaria encobrindo. O esquema sensório-motor encobriria isso.
Vejam bem o que estou dizendo:
A prática do esquema sensório-motor é constituir um tempo utilitário, um tempo da utilidade. Então, todo o tempo [com] que nós entramos em contato na nossa existência é um tempo orgânico – é um tempo dos interesses do organismo. Na hora que o organismo entra em crise emerge o que eu chamei de tempo cristalino, ou melhor – o cristal do tempo. O cristal do tempo é a emergência do atual e do virtual simultâneos. O passado e o presente simultâneos. Emerge um dos componentes mais paradoxais do pensamento, porque sempre que nós pensamos o tempo, o tempo nos aparece como sucessivo: passado antes, presente depois, futuro depois. O tempo é sempre sucessivo. Sempre! Na verdade, o tempo aparece para nós como presente atual, presente antigo e presente futuro. No momento em que se quebra o esquema sensório-motor – o tempo vai aparecer para nós fora desse modelo orgânico. Vai aparecer, segundo Bergson, como ele é. E como ele é, são dois abismos – o abismo do presente e o abismo do passado. Mas não um passado que já foi presente – é um passado que jamais foi presente. Esse passado, que nunca foi presente, chama-se passado em si. Passado em si.
(Está bem até aqui?)
Aluno: Mais ou menos… Esse passado que não foi presente seria… estaria mergulhado nesse inconsciente, nessa alma?
Claudio: É.. é… Olhe aqui, A. O déjà vu. .. o déjà vu é você entrar em contato com alguma coisa qualquer em que você diz: “Eu já vivi isso”. Você diz:: “eu já vivi isso”! Na verdade você não viveu aquilo. É porque, naquele instante, o que está aparecendo para você é simultaneamente presente e passado. Por isso é que você diz eu já vivi e vivo isso. Você vive e viveu simultaneamente. Então, esse vivi, esse viveu – é um passado que jamais foi presente. Ele nunca foi presente. Aparece um passado puro para você. Esse passado puro chama-se virtual
Ainda ficou muito difícil? É… está difícil, não é? Vamos voltar…
Aluno: Segundo o Bergson isso não seria a paramnésia, não é?…
Claudio: É a paramnésia! É a paramnésia! Só que a paramnésia – é uma coisa que vocês têm que compreender – a paramnésia… quebra as estruturas dos nossos hábitos. Os nossos hábitos governam a nossa vida… Os nossos hábitos compõem formas e modelos para a gente viver. Então, o nosso hábito compõe o tempo – como se fosse uma linha de sucessão. É assim que o hábito produz o tempo!… Ele produz o tempo como se fosse… um presente atual… E esse presente atual se transforma em antigo presente ou é o futuro presente. Quando esse… essa paramnésia se dá, que é uma patologia do esquema sensório-motor, ou melhor dito, é uma patologia do hábito – o hábito entra em crise… Quando isso ocorre – o hábito perde o poder. Quando ele perde o poder, o tempo aparece para nós exatamente como ele é. Então, o tempo sucessivo é um tempo orgânico e o tempo onde estão o atual e o virtual simultâneos é um tempo ontológico. Ele é… como é em si mesmo, como é nele mesmo – independente de qualquer projeção psicológica, orgânica, independente de qualquer estrutura física. Então, é exatamente isso que é o fora do Foucault, isso que é o inconsciente do Bergson. – Você tem, então, nesse instante… aparece uma coisa surpreendente. .. E isso é que é a dificuldade da gente pegar! – É que o tempo não tem o passado, o presente e o futuro… – Atenção! Esse momento é fantástico! Se vocês puderem perguntar, fortalece. .. – O passado, o presente e o futuro, a partir dessa lição da paramnésia, já não são mais sucessivos. O passado, o presente e o futuro se tornam simultâneos – é a simultaneidade do tempo… A simultaneidade do tempo aparecendo de uma maneira assustadora para nós, porque nós sempre convivemos com essa ideia de sucessão. Essa ideia de sucessão – é isso que é preciso dominar – é gerada pelo nosso hábito; isso se chama representação orgânica. A representação orgânica que nós fazemos do tempo é uma projeção que a gente faz pelo hábito!
Aluno: [trecho inaudível] diferença do passado e do futuro?
Claudio: O que está sendo chamado de futuro pertence… à dimensão presente. Porque o presente para o Bergson não é alguma coisa estacionária. O presente para ele é o devenir, é um processo. Quando o Bergson pensa o presente, ele pensa o presente como um processo. Então, para ele, presente e futuro são combinados, eles são simultâneos porque você, mergulhado no presente, você está ao mesmo tempo se encaminhando para o futuro. Nós estamos constantemente nos encaminhando para o futuro. Isso é que se chama devenir... – o presente enquanto devenir é isso. Ele não é uma entidade estacionada – ele é um processo: chama-se devenir. Enquanto que o passado é o passado em si.
Eu vou ajudá-los com a nomenclatura (Tá?).
Platão, na obra dele, diz que nós teríamos dois poderes de apreender o passado. Um dos poderes chama-se memória. E com a memória nós apreendemos o passado que é um antigo presente nosso. Como é que se dá essa apreensão no cinema?
Aluno: [Pelo] Flashback.
Claudio: [Pelo] Flashback! Por exemplo: no Orson Welles, no “Cidadão Kane“, é uma sucessão de flashesback. Eu não sei se vocês se lembram de A Condessa Desacalça, do Mankiewicz? Também é uma sucessão de flashesback. Então, essa sucessão de flashesback é… (Por que eu estou falando isso?… Bateu uma amnésia…)
Alunos: [Vozes… trecho inaudível]
Claudio: Ah! Platão. Então… quando nós apreendemos o passado, que é o antigo presente, Platão diz que o instrumento para fazer [essa apreensão] chama-se memória. Mas que nós possuiríamos um instrumento para apreender o passado puro – um passado que nunca foi presente. Em português chamar-se-ia de reminiscência. A reminiscência seria o poder – em grego é anamnese – de apreender o passado em si mesmo. O passado puro. Então, o que está aparecendo aqui, é, na verdade… todo o trabalho que estou fazendo… é uma tentativa de… – Olha o que eu vou dizer! -…é uma tentativa de tirar o modelo da representação orgânica. O modelo da representação orgânica é muito simples – o presente preenche todo o tempo. Aonde você for no tempo, você só encontra uma dimensão: qual? Antigo presente, futuro presente, presente atual, presente imaginado, presente sal… Tudo é presente! Ou seja, o modelo do presente – esse é um achado terrível! – o modelo do presente, ou seja, o tempo preenchido pelo presente, é um modelo constituído pelo hábito. Os nossos hábitos constituem o tempo inteiramente preenchido pelo presente. Então, eu posso perfeitamente dizer para vocês que todo cinema realista é um cinema do hábito. Cinema do hábito… (Certo?). Então, a tentativa de produzir um cinema fora da representação orgânica…
Agora vamos usar os nomes exatos, hein?
Um cinema fora da representação orgânica, um cinema fora do hábito, um cinema fora do bom senso. Bom senso é quando o esquema sensório-motor funciona perfeitamente. Um cinema fora do hábito, um cinema fora do bom senso… é desativar a representação orgânica. Ou seja, é desarticular a ideia de que o presente preenche todo o tempo. E aqui nós fizemos a primeira tomada – como se diz tomada em cinema – da ideia de tempo.
Então, a ideia de tempo é nós tentarmos romper com duas articulações que são feitas pelo modelo do hábito. Primeira… – eu queria que vocês não tomassem conta dessa… – a primeira é a sucessão. A sucessão… – passado, presente e futuro são sucessivos. Essa é a primeira. A representação orgânica só trabalha assim. Ela só trabalha assim.
E a segunda… a segunda é que essa sucessão torna o presente a única dimensão que existe no tempo. Só existe o presente.
(Nós vamos crescer aqui, ouviu? Nós vamos fazer um crescimento aqui…). Então, é… quando você pega… (Vamos ver aqui…)
Eu vou usar a memória e a reminiscência, conforme eu disse para vocês agora. Prestem atenção! O ato da memória se dá em qual dimensão do tempo?
Alunos: Presente.
Claudio: Presente. E o ato da reminiscência? Presente.
Todos os dois atos se dão no presente do tempo. O ato da memória vai mergulhar e trazer lá do… lá… no passado – o que a memória traz não é o passado, o que ela traz é o antigo presente – ela traz o antigo presente. Vocês podem fazer a experiência – vocês vão ver… – a memória traz o antigo presente. Então, o ato da memória é colocar um antigo presente no presente atual – é isso que ela faz! Ela joga o antigo presente no presente atual. Então, toda prática da subjetividade é uma – atualização. Agora, a reminiscência – usando esse conceito platônico – a reminiscência… ela não quer trazer um antigo presente. Ela quer trazer a pátria onde este antigo presente existe. A pátria em que este antigo presente existe é o tempo puro. É como se…
Aluno: O quê?…
Claudio: Pátria! Esse nome não é um nome… nada tem a ver com o 7 de setembro. É um nome assim… proustiano, no sentido de que quando você vai se lembrar de um acontecimento da sua vida – por exemplo, da semana passada – quando você vai se lembrar desse acontecimento, você começa a usar a memória para recuperar esse acontecimento, reativar esse acontecimento, esse acontecimento aparece para você, ele emerge como imagem, aí você [o] puxa e coloca no seu presente atual – lembrando-se dele… vendo até as imagens. Agora, essa imagem é como um peixe que vivia num oceano chamado tempo puro. O que a memória traz são os peixes, a memória jamais traz o oceano. E a reminiscência seria… trazer o oceano. Mergulhar no tempo fora da representação orgânica. Então eu vou chamar esse tempo fora da representação orgânica…. – dentro desses limites do que foi esta aula… vocês vêem que é uma aula em que poucas vezes eu citei o cinema… Eu citei, o quê? Um pouco de Hitchcock, mais nada. É… é..
(O que é que eu disse?…)
Aluno: [trecho inaudível] representação orgânica.
Claudio: A representação orgânica… e a outra vou chamar de… vamos usar mesmo o nome de representação – não tem problema… – representação cristalina. Cristalina. O cristalino... o cristalino é a saída do governo que a força do habitus exerce sobre as nossas vidas. (Vamos usar habitus com us, para não fazer confusões. E vamos começar a entender o que é isso!) Então, o que eu acabei de dizer para vocês agora [nessa] exposição final – é que o habitus constitui as nossas representações de mundo. Chamam-se representações orgânicas. Nós temos representações do mundo [e] essas representações do mundo são produzidas pelo hábito. Nós confundimos – e essa confusão hoje vai ser difícil de compreender – nós confundimos o hábito com a natureza. Nós estamos pensando que nós estamos agindo por natureza – e nós estamos agindo por hábito.
O hábito seria um componente constituinte do sujeito humano. Humanizar-se é… – ter o hábito de adquirir hábitos. Só há humanidade se houver hábito. Logo, o cinema cristalino é a quebra da humanidade. Para entrar no cinema cristalino, você tem que romper com os domínios das representações humanas – sair do humanismo, sair do homem. O que implica em dizer que filósofos, aparentemente estranhos à questão do cinema, como por exemplo Nietzsche – que toda a obra do Nietzsche é para construir o super-homem e liquidar com o homem – está presente nisso aqui. Ou seja, o cinema é uma atividade – vamos usar esse nome – é uma atividade que busca a conquista do tempo puro. E essa conquista do tempo puro é – quebrar a representação orgânica e o domínio do hábito.
(Que horas são?)
Aluno: [trecho inaudível]
Claudio: (Foi bem?) Agora vamos ver os conceitos que nós teremos que ter governados para a próxima aula. O conceito de representação orgânica: é o tempo como sucessivo e [integralmente] preenchido pelo presente. A representação orgânica é isso – o presente preenche todo o tempo. Você não sai do presente – não há hipótese de sair do presente – nem quando se lembra, nem quando projeta: o presente te governa. A quebra da representação orgânica no mecanismo do Bergson, o elemento que ele trouxe para quebrar a representação orgânica foi muito simples – foi a paramnésia. A paramnésia seria o elemento para quebrar a representação orgânica.
(Vamos outra vez?)
O que o Hitchcock introduziu para quebrar a representação orgânica? [Uma] perna quebrada…
Aluno: [trecho inaudível] do sensório-motor.
Claudio: Uma paralisação do sensório-motor por causa de uma perna [engessada], ou por causa da fobia que [a personagem do James Stewart] tinha por alturas, (não é?) Então, [o Hitchcock] ali quebra o esquema sensório-motor, ele quebra a representação orgânica. Porque é esse o enunciado principal – as pernas quebradas, a fobia da altura ou a paramnésia rompem com os vínculos com o mundo. É esse o enunciado principal: [a] separa[ção] do mundo – você se separa do mundo! – Esse é um momento muito grave de aula, viu? – porque esse momento vai mostrar para vocês que o cinema é uma coisa muito mais poderosa do que as pessoas pensam. Porque, sob o regime da representação orgânica, as pessoas praticamente reduzem o cinema à diversão. O cinema não é [diversão]: o cinema é uma das experiências mais poderosas que a vida já fez. – [ao] tornar a imagem movimento e tornar a imagem temporalizada. Então, esse enunciado – a quebra dos vínculos com o mundo – (Está bem aqui, A.? Você está entendendo o que eu estou dizendo?) Quebrar os vínculos com o mundo! Você quebrou os vínculos com o mundo… Quando você quebra os vínculos com o mundo, o que desaparece [trecho inaudível] o problema? Desaparece a objetividade, não é isso? Ou não? (Foi o que eu disse na aula toda!) A objetividade desaparece. Mas ao desaparecer a objetividade você não mergulha na subjetividade. Você não entra na subjetividade. Porque, ainda que isso vá ser um pouco complexo, porque nós vamos encontrar determinados cinemas… parece que o cinema russo, algum cinema sueco… eles tentaram quebrar o esquema sensório-motor, por exemplo, com a figura do moribundo. O moribundo é aquele que tem o mundo diante dele mas não pode reagir sobre o mundo. Então, o moribundo também traz uma crise do vínculo sensório-motor. Toda a questão é insistir nesse enunciado – um enunciado muito novo, que eu sei [ser] muito difícil – que é o vínculo do nosso corpo com o mundo, que a representação orgânica faz. Nosso corpo é vinculado no mundo. E… o ato existencial de um moribundo quebra esse vínculo. O vínculo se quebra, porque ele não pode mais agir sobre o mundo. Ele não tem como agir sobre o mundo. Por isso que determinados cineastas experimentam o moribundo como elemento para romper os vínculos com o mundo (Entenderam aqui?) Para romper esses vínculos. Então eu vou simplificar, porque não é só isso. A gente pega por exemplo um Tarkovsky… e você está vendo um filme do Tarkovsky e você não sabe se aquela cena que está se processando ali é um sonho, é uma imaginação, é um delírio, é uma memória ou se ela é real. Ele torna o acontecimento indiscernível (Eu queria que vocês marcassem esse conceito!). Indiscernível! A indiscernibilidade de um acontecimento… vai trazer um afogamento do esquema sensório-motor. Imaginem se o Gary Cooper sai do Saloon para fazer um duelo com o Lee Marvin…. chega na rua… e entra na indiscernibilidade – ele não sabe o que é imaginação, o que é sonho, o que é real, o que é memória… Ele vai “dançar…” vai “dançar”! Então, é exatamente, numa outra linguagem, fazer dançar o esquema sensório-motor, produzindo o indiscernível O cinema do Tarkovsky é magnífico para isso. Você fica mergulhado numa indiscernibilidade assustadora… Não sei se vocês viram o cinema-cérebro dele – Solaris? Vocês precisam ver… o magnífico Solaris. Solaris é a resposta do Tarkovsky ao Kubrick, do 2001. Quando o Kubrick fez 2001 – que é o cinema-cérebro – [o Tarkovsky] fez Solaris – que é o cinema-cérebro soviético. É lindíssimo o filme! Você mergulha numa indiscernibilidade total. Você não sabe se é real, se é imaginário, se é sonho, se é lembrança... porque você não sabe mesmo! Tem acontecimentos assim, surpreendentes! O surgimento de imagens produzidas pelo seu cérebro. O seu cérebro que produz. Na verdade não é o seu cérebro que produz, quem produz é o cérebro do planeta – que é um cérebro líquido. Ele produz tudo que você deseja. Tudo o que você deseja ele produz. Então, há uma personagem principal… a personagem principal que ele… a mulher amada dele volta…. ele não resiste à volta dela, ele vai matá-la, mata mesmo!. .. Ele a mata de uma maneira sórdida, horrível – mas o cérebro manda outra... manda outra. Então, isso que está acontecendo no cinema do Tarkovsky é o rompimento com o esquema sensório-motor. Ele começa a gerar a indiscernibilidade. Aí você não sabe que aquilo que está ocorrendo… onde é que aquilo está ocorrendo. Porque quando esse processo se dá, o esquema sensório-motor começa a entrar em crise.
(Eu acho que está bom por hoje! Obtivemos algum êxito, não é? Algum êxito num momento muito difícil… é… é… Os conceitos que eu gerei para vocês foram conceitos realmente muito difíceis… e nós tivemos uma certa facilidade em fazer o domínio deles, isto é, submetê-los à presença do nosso entendimento.)
(Fechando para vocês..)
Há uma preocupação dos grandes pensadores com o que eu acredito seja a questão mais premente da vida do homem – que é aumentar a capacidade da nossa compreensão, aumentar a capacidade do nosso entendimento. O nosso entendimento está muito prisioneiro das linhas do hábito… ele está prisioneiro das linhas do subjetivo e do objetivo! E… prisioneiro daquilo, ele não é capaz de fazer mergulhos em nada de especial. Por isso uma das questões mais bonitas e mais complexas que o cinema-tempo vai nos trazer chama-se (vocês vão só marcar), chama-se a produção do autômato espiritual… A produção do autômato espiritual… que é produzir um pensamento capaz de entrar em contato com o fora, a alma, o inconsciente, o virtual. Quer dizer, nos tirar das regras da representação orgânica e do hábito.
(Está bom, não está? Espero que eu tenha tido êxito. Acredito que sim. Vamos fechar aqui mais um pouquinho…)
O cinema do hábito pode ser…. (vamos [colocar] aqui… é…) É incrível isso que eu vou dizer… Mas o melhor que vocês podem [fazer é colocar] o cinema histórico, o documentário, o cinema noir, o cinema psico-social… Vocês se lembram de Geórgia, [do Arhur Penn, o título é] Amigos para Sempre? Esse é um grande exemplo! Aqueles filmes do Cecil B. DeMille… (Como é que é o nome?) “Sansão… não sei o quê…” Lembram-se desse cinema? Cecil B. DeMille… Cinemas históricos! Então, esses cinemas… o faroeste... são chamados cinemas da representação orgânica – o cinema que está prisioneiro do tempo presente… ou prisioneiro do esquema sensório-motor em pleno funcionamento. Quebrar o esquema sensório-motor é simultaneamente quebrar o vínculo com o mundo.
(É nessa quebra do vínculo com o mundo que eu vou entrar na próxima aula). É exatamente isso que é o nascimento do cinema-tempo. Por exemplo, Vittorio De Sica, Roberto Rosselini… as personagens deles vêem e se assustam. Ou seja, você sai do campo da ação e entra no campo da visão. Ou, melhor dito, você sai do que se chama actante (a…c..t…a…n…t..e) e faz aparecer o que se chama vidente. Vidente é uma personagem que foi liberada na obra poética do Rimbaud. Ou seja, quando você quebra os vínculos com o mundo, você já não é mais um actante. Você já não está mais ali para agir – você está para ver. Ver como aquele que age jamais pode ver! Por isso o grande pensador… ele é um atleta do espírito… e geralmente ele viu coisas terríveis – que não é exatamente o que o Nexus-6 viu. Entenderam o que eu disse? O Nexus-6, ou não? – Blade Runner! [Nexus- 6, a personagem vivida pelo] Rutger Hauer, diz: “Eu vi coisas que jamais os olhos humanos poderão ver”. – Mas o que Rutger Hauer viu são coisas do sensório-motor. O que… o que… o que o homem que quebra o sensório-motor vê, são coisas fora do subjetivo e fora do objetivo. Então a vidência são experiências às vezes mortais – produzem uma fraqueza orgânica muito grande…. e aí o artista não suporta e morre… As experiências que ele faz fora das representações orgânicas…
(Está bom?)