Aula de 08/05/1995 – O designante, o designado e o referente

Temas abordados nesta aula são aprofundados nos capítulos 1 (Implicar – Explicar); 2 (O Extra-Ser e a Similitude) e 11 (Conceitos) do livro “Gilles Deleuze: A Grande Aventura do Pensamento”, de Claudio Ulpiano.

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[A realidade é constituída de indivíduos:] este copo, este rádio, este livro, este lenço. Agora, melhorando para vocês em termos linguísticos: indivíduo é tudo aquilo que recebe na frente de seu nome um adjetivo demonstrativo. Então, se eu disser: esta cadeira, este copo, este livro – cadeira, livro e copo são indivíduos – por causa da presença do adjetivo demonstrativo este [diante do substantivo]. (Certo?)

Então… (Vocês estão marcando?)

A minha afirmação é de que o indivíduo é a única realidade. Esse enunciado é duro: daqui a pouco ele se torna flexível, (tá?) – a única realidade é o indivíduo! E nós – os sujeitos humanos – temos o poder de nomear o indivíduo pela linguagem. O meio que nós temos para nomear os indivíduos pela linguagem é o nome + o pronome adjetivo demonstrativo; ou o nome próprio. Ou seja, os indivíduos podem receber o nome próprio. (Entenderam bem aqui?)

– A realidade seria constituída de quê?

De indivíduos!

E a linguagem teria um processo de nomear esses indivíduos [com substantivos antecedidos de adjetivos] demonstrativos ou pelo nome próprio.

Vamos dar uma melhorada nisso: o adjetivo demonstrativo e o nome próprio nomeiam o indivíduo. Eu vou chamar o adjetivo demonstrativo e o nome próprio de designantes – e o indivíduo de designado. Agora vai ficar mais claro: a realidade é constituída de designados – que são os indivíduos. (Certo?)

Aluno: Isso é nos medievais (não é?)

Claudio: Quem está dizendo isso é o Guilherme de Ockham, (tá?)

Agora: Atenção! Eu pego a palavra cadeira, a palavra mesa e a palavra copo e coloco, antes dessas três palavras, o adjetivo demonstrativo este ou esta – esta cadeira, esta mesa, este copo. Esses adjetivos demonstrativos têm a função individuadora. (Vocês entenderam?)

Agora: eu pego essas três palavras – cadeira, mesa e copo – e coloco, antes delas, o artigo definido o ou a, e digo – a cadeira, a mesa, o copo.

Quando eu coloco o artigo definido – o artigo definido universaliza as palavras. Então, o artigo definido tem uma função universalizadora.

– Quando eu falo “a cadeira” e quando eu falo “esta cadeira”?

Eu digo “esta cadeira ” e o J. me pergunta – Qual? Eu digo: J., aquela... (tá?) E aí eu estou falando sobre o indivíduo.

E aí eu falo “a cadeira ” e o J. me pergunta – Qual cadeira? E aí eu digo: quando eu falo “a cadeira”, eu estou me referindo a todas as cadeiras que já existiram, que existem e que existirão. Então, a palavra cadeira recobre ou subsume todos os indivíduos cadeira. (Está bem?)

Então, no nível da linguagem – qual é a diferença entre o universal, que é dado pelos artigos [definidos]; e o individual, que é dado pelos adjetivos demonstrativos? É muito simples: no nível da linguagem, o individual [aparece] quando os nomes comuns recebem a palavra este; e os universais, quando os nomes comuns recebem o artigo definido. (É só isso!) Então, quando é que você teria um universal? Na hora em que você colocasse o artigo definido.

Aluno: O demonstrativo vai dar a singularidade, o singular?

Claudio: O individual ou singular – porque [nesta teoria] individual ou singular são sinônimos! (Tá?) (Marquem isso!)

Aluna: Naquelas três categorias – singular, individual e universal?

Claudio: Individual e singular são sinônimos; e universal é aquilo que – na linguagem – é dado pelo artigo definido.

(Agora vai ser facílimo, tá?)

Existe – em linguística – uma palavra chamada referente. No momento em que eu digo um substantivo comum antecedido de um adjetivo demonstrativo, eu estou fazendo uma prática designante (não é isso?). Agora, ao fazer isso, eu espero que – para lá dessas palavras – exista um objeto. Ou seja: as palavras designantes – que são o adjetivo demonstrativo mais o substantivo comum – apontam para alguma coisa que existe.

(Posso prosseguir? Se vocês não entenderem, vai prejudicar na frente!)

Aluna¹: O referente é o… objeto real.

Aluna²: É o designado?

Claudio: É o designado!

Então, quando você pega um substantivo comum, mais o adjetivo demonstrativo, você produz o designante ou indicador de indivíduos – contando que para lá da palavra exista alguma coisa. Essa coisa que existe para lá do designante chama-se objeto real ou indivíduo. (Certo?)

Aluno: Eu não consegui entender!

(Vamos ver outra vez! Abandonamos o estudo, vamos voltar outra vez!)

Eu pego a linguagem, então, atenção: eu estou na linguagem, hein? Na linguagem portuguesa existe uma categoria chamada substantivo comum? Existe? Cadeira, mesa, copo? Agora, atrás desse substantivo comum – de qualquer substantivo comum – eu vou colocar um adjetivo demonstrativo: esta cadeira, esta mesa, este copo. Quando eu reúno o substantivo comum ao adjetivo demonstrativo, eu estou produzindo o que se chama um designante ou – se vocês quiserem – um denotante, dá no mesmo! Quando eu produzo um designante, eu espero que – para lá do designante – exista um designado. (Vocês entenderam?) O designado chama-se objeto real.

Aluna: É um substantivo comum.

Claudio: Não! Comum, não! É a coisa! Quer ver? Lápis é um substantivo comum?

Aluno: É!

Claudio: Este lápis [Claudio mostra um lápis], este aqui é um designado – é a coisa. É o referente. O referente que é o real.

Aluno: E se eu usar a palavra ideia. Esta ideia – funcionaria também para isso?

Claudio: Funcionaria… funcionaria… O que importa é que o indivíduo pode ser dito de duas maneiras: pelo substantivo comum + o adjetivo demonstrativo; mas também pelo nome próprio. E mais: quando ele for visível, você também pode apontar com o dedo. (Vocês entenderam?)

Aqui – [Claudio aponta o dedo para um livro:] este dedo está funcionando como um substantivo comum, junto com um adjetivo demonstrativo – porque ele está apontando para um designado [a coisa livro]. Então, o que a filosofia vai afirmar, é que o indivíduo – qual o sinônimo de indivíduo? Singular! Qual é o sinônimo latino? Substância Primeira! Qual o sinônimo grego? Protos Ousia! Então, nós supomos que o indivíduo seja real – quem produz o indivíduo não é a palavra: ele existe independente da palavra. (Você entendeu?) O indivíduo existe independente da palavra.

Agora, vamos para o universal:

– Como é que se constrói o universal? Novamente o substantivo comum, com o artigo. Então: a mesa é o nome de um universal; a cadeira é o nome de um universal; esta cadeira é o nome de um individual ou singular; esta mesa é o nome de um individual ou singular.

Agora: quando você produz o substantivo comum + o artigo definido – que é o nome do universal – para lá desse nome não existe nada. (Vocês conseguiram entender, não? Pegou isso, J.?)

Aluno: Eu não peguei, não.

Vamos outra vez, então. Ouçam aqui:

Quando eu digo este copo – eu estou falando sobre uma coisa real que está aqui na minha frente. Alguma coisa que existe realmente na minha frente. Mas quando eu falo o copo, essa expressão universalizada – pelo artigo definido – não encontra, na realidade, nada que a complemente. Ou seja: quando você produz um nome universal…

Aluna: É abstrato?!

Claudio: Quer usar, usa, que é bom: não é exatamente isso – mas pode usar!

Um nome universal não tem correspondente real. Um nome individual tem correspondente real!

(Vocês entenderam?)

Então, qual é a diferença, quando eu digo: “este copo” e “o copo”? É que eu suponho que “este copo” tem um indivíduo real; e “o copo” não tem um indivíduo real. Então, se o nome universal não tem objeto real ao qual ele esteja designando (entendido?), o universal não é real – é apenas um signo. Nada mais do que isso! Enquanto que, quando eu digo esta cadeira, esta mesa, J., T., quando eu produzo o que se chama designante, nós contamos que para lá da palavra exista um objeto real, que se chama, em linguística, o referente. (Entenderam?)

Então, nós achamos – agora vamos completar! – que o individual é um referente, mas o universal não é um referente.

Aluna: Então, qual a diferença entre designante e designado? Eu entendi que designante era um adjetivo demonstrativo e que o designado era um substantivo comum…

Claudio: Não! O designado é a coisa!

Aluna: É o objeto real?

Claudio: Sim, é o objeto real! É esse lápis que está na tua mão; é o referente! Isso que é o designado. Designado é sinônimo de referente. (Tá?)

Então, a filosofia vai fazer um estabelecimento: só existem os indivíduos ou singulares – são esses que existem! E os universais? São transformados em signos. (Entenderam?) Isso daí – numa avaliação simplória – estabelece que só é real o individual. Então, se Deus existir, ele é?

Alunos: Um indivíduo!

Claudio: Entenderam? Só é real o indivíduo! E o universal não é real.

– Essa tese – que eu acabei de apresentar – dá o individual e o singular como sinônimos? Nessa tese, individual e singular são sinônimos? São sinônimos. (Tá?)

Agora, a diferença entre singular e individual vai aparecer [em Espinosa] não textualmente – [porque] no texto espinosista vocês não vão encontrar essa questão; [mas ela aparece] claramente em textos do século XX – como, por exemplo, na obra do Deleuze. O que eu estou dizendo para vocês, é que a filosofia de Guilherme de Ockham – no século XIV – identifica individual e singular. Agora, quando você vai para a obra do Deleuze, singular e individual não são a mesma coisa. (Tá?)

Então, a partir daí, nós vamos fazer esse desdobramento que o Deleuze fez – separando o individual do singular – e eu vou passar a dizer o seguinte para vocês:

Quando o individual e o singular eram [considerados] a mesma coisa – o singular e o individual eram os reais ou a realidade física. O singular ou o individual, enquanto sinônimos, são as realidades físicas.

– O mundo físico é constituído de…?

Aluna: Reais!

Claudio: Reais – singulares ou individuais, tá?

Aluno: Isso para o Deleuze?

Claudio: Não, isso daqui para o século XIV! Então, você vai fazer física, eu chamo um físico, o que eu vou estudar? Indivíduos! Ou Singulares, tá? E se eu quiser estudar o universal, eu não vou estudar física, porque o universal não existe na realidade. O universal é um mero signo. Mero signo!

Aluna: Signo ou símbolo?

Claudio: É melhor utilizar signo, porque quando eu for trabalhar, signo fica muito mais claro! E depois, quando eu for dar aula de semiótica para vocês, não vai haver o menor problema. Logo, semiótica resolve isso diretamente!

Eu disse que o Espinosa vai fazer [essa separação], mas não é muito claro, mas em Deleuze vai haver um acontecimento: Deleuze vai separar o individual do singular. E quando ele faz essa separação, vai passar um momento muito difícil para nós. Porque, para Deleuze, o universal é praticamente a mesma coisa que o Guilherme de Ockham disse. Quer dizer: para o Guilherme de Ockham, o universal existe? Não! É um mero signo. Vamos dizer que o Deleuze concorde com isso, tá?

– E para o Guilherme de Ockham, o individual existe?

Alunos: Sim!

Vamos dizer que o Deleuze também concorde com isso: que o individual existe. Mas o Deleuze separou o individual do singular. Ele separou um do outro! E agora vai aparecer a grande surpresa – que isso é espinosista, com outra linguagem!

O singular não é um signo. O universal é um…?

Alunos: Signo!

Quando algo é um signo, este algo – que é um signo – é chamado de objeto mental. O universal é um signo ou objeto mental. E o individual? O individual é real.

Então, a diferença do universal para o individual, é que o universal é um objeto mental e o individual é um objeto real – Atenção: real físico! (Certo?) Então, qual a diferença do universal para o individual? O universal é um objeto mental. Se Deus resolver destruir todas as mentes, quem desaparece? O objeto mental; desaparece o universal! Se Deus aniquilar todas as mentes, o universal desaparece. Por que ele desaparece? Porque ele é um objeto mental! (Vocês entenderam?)

Aluno: O real fica!

Claudio: O real fica! Deus pode acabar com todas as mentes, mas isso não acaba o individual. Porque o individual não depende das mentes (certo?). Ele tem uma realidade física, independente da mente. (Entendeu?)

Agora, o Deleuze vai fazer o quê? Separar individual de singular. E vai dizer que o singular não é um objeto mental. Ele vai dizer que o singular também é real. Então, para o Deleuze, são quantos reais? Dois! O individual e o singular. (Certo?) Então, ele está dizendo que há dois reais.

– Quais são os dois reais do Deleuze?

O individual e o singular. Nesse momento, é a única coisa que eu posso fazer. Eu vou fazer a seguinte diferença: o individual é uma realidade física. E o singular é uma realidade metafísica – que nós ainda não sabemos o que é (tá?).

Mas como é que nós distribuímos o início do nosso trabalho? Distribuímos bem! Nós mantivemos o universal como objeto mental; então nós já sabemos que se não houver mente, não há universal! Que o individual existe independente de qualquer mente – ele existe, (tá?) (Entenderam?) Agora apareceu outra realidade: uma segunda realidade, chamada singular. Agora, eu volto para o Espinosa. Volto para o Espinosa! (Vocês entenderam essa prática toda que eu passei?) (Acho que foi bem, não é?)

Aluna: Foi uma viagem imensa!

Claudio: Vamos fazer a distinção novamente?

→Universal – objeto mental.

→Individual – real físico (tá?).

→Singular – ainda que a gente não saiba o que é, eu estou chamando de – real metafísico.

Agora, vamos passar para o Espinosa:

Vamos dizer que o Espinosa pegue o universal e diga a mesma coisa: que o universal é objeto mental. Que ele diga isso! Então, ao dizer que o universal é objeto mental, ele não está fazendo nada de novo. Está praticamente reproduzindo o Guilherme de Ockham, que, [por sua vez] está praticamente reproduzindo o Aristóteles. Não tem nada de novo aí. Mas, vamos dizer agora, que o Espinosa chama o individual de existente.

– O que é o existente?

É o individual. Pronto!

É individual, é existente! Ele identificou existência a indivíduo. E o singular – a identificação é surpreendente! O singular vai ser identificado à essência! (Tá?)

Então, voltando: na linguagem espinosista, nós teríamos o universal, o existente e o…

Agora, eu vou até abandonar a ideia de universal! Eu vou falar objeto mental, existente e essência.

Aluno: A essência seria singular?

Claudio: Singular!

Então, o que nós já temos que saber, é que vai chegar um momento em que eu vou distinguir teoricamente, para vocês, o que é singular e o que é individual. Eu vou fazer essa distinção!

(Vocês acham que foi bem até aqui? Cada um de vocês de per si se garante no que eu acabei de falar, ou necessita que eu fale mais alguma coisa? Vocês acham que está tudo bem?)

Aluna¹: Não, eu só queria saber da essência!

Claudio: Porque eu não expliquei! Eu não expliquei!

Aluna²: Eu só queria confirmar uma coisa: designante, então, é um conceito linguístico?

Claudio: É apenas da linguagem!

Aluna²: E o designado é concreto?

Claudio: Isso! O designado é o referente.

Aluna²: É o existente?

Claudio: É o existente, na linguagem do Espinosa!

Aluna²: E o designante é apenas um conceito linguístico!

Claudio: Só linguístico! Só! Este é um nome próprio. É o que se chama prática propriamente semântica. A semântica é a relação do designante com o designado. É isso que é a semântica. Você quer ver que coisa interessante? Sempre que você produz um designante…

– Me dá um exemplo de designante? Substantivo comum + adjetivo demonstrativo ou o nome próprio. Sempre que você produz um designante – nome próprio ou o substantivo comum + o adjetivo demonstrativo – você conta que, [você] espera que, exista um referente. (Certo?) Mas você pode produzir designantes que não tenham existência real, que tenham, por exemplo, existência imaginativa. Por exemplo: o centauro, o cavalo-alado – são designados imaginativos. Enquanto que há designados absolutamente reais. Mas, seja o que for, se ganhar existência física – necessariamente tem que ser um indivíduo. Ganhou existência física, tem que ser indivíduo. (Tudo bem? Nenhuma questão?)

Aluna: Como é que fica se você chamar… este espaço?

Claudio: Este Espaço? Individualiza o espaço! Isso aí, sem saber, você está colocando uma questão kantiana (viu?). Você está individualizando o espaço! Sempre que você usar o adjetivo demonstrativo na frente de um substantivo comum – é uma prática de individuação. É isso que vai haver em termos de linguagem. Em termos de linguagem!

E em termos de linguagem universal? É o substantivo comum + o artigo definido. Agora, a facilidade para vocês entenderem a relação linguística disso tudo é que, quando você produz um universal, esse universal não tem referente.

Claudio: Vê menina, se você entendeu? Não, não entendeu!

Aluna: Agora, quando a gente pega a palavra espaço, que é uma palavra problemática, se agente diz este espaço. Mas “o espaço”, existe?

Claudio: Nós vamos ver isso depois! Não vai ter problema nenhum! Não constitui problema não (viu?). É aparente que constitui problema! Mas agora eu estou com problema ali é com a N.. Você não entendeu, não é, N.?

Aluna¹: Não, eu entendi, eu estou tentando ver onde você está chegando, na questão do Kant… aí do espaço…

Claudio: Não se preocupa com essa linguagem, porque depois – quando for necessário – eu aplico essa linguagem. Você não se preocupe com os nomes que estão sendo usados. A única coisa que eu quero que você compreenda… é que nada corresponde ao universal no mundo real. Ao individual corresponde o indivíduo. É isso que importa!

Então, há uma linguagem – vou usar os nomes, agora – há uma linguagem que é indicadora de indivíduo. Essa linguagem chama-se designação. A designação faz o quê? Indica indivíduos! Agora, quando você produz o universal, você já não está na prática do designante – você está na prática do significante. É isso, o significante não indica nada no real! Nada! Nada! Então, usa isso, tá? Não é espinosista, mas usa!

Então: ao universal, nada corresponde no real. Ao designante, corresponde o indivíduo. O terceiro termo é singularidade. É o terceiro termo. Esse terceiro termo não é espinosista: Espinosa não emprega esse termo! Mas, no universo do Espinosa, esse termo “singular” – para nós, [nesta aula] – vai passar a ser sinônimo de essência. E indivíduo, sinônimo de existência. (Vejam se vocês entenderam?)

Aluna: Quer dizer que Espinosa não fez a separação entre individual e singular? !

Claudio: Fez, na linguagem existência e essência. Ele não usou as palavras “individual e singular”. Ele usou as palavras “existência e essência”, para fazer a mesma prática separativa. Vocês estão conseguindo acompanhar? Elas fariam a mesma prática de separação.

(Mais alguma questão?)

Aluno: Ele não fala individual e singular?

Claudio: Não, e se por acaso ele vier a falar, isso não é problema para nós agora. Não é problema! Não é questão para nós! A nossa questão é que singular vai ser essência e individual vai ser existência.

Agora, vamos partir para o individual. Esqueçam o universal e esqueçam o singular. (Tá?) Nós estamos partindo para o individual.

Este mundo que está aqui, este planeta que está aqui, nele, neste planeta – vou ser bem irredutível para ficar bem claro o que eu estou dizendo… Existem, neste planeta que está aqui – ou melhor, no Universo existem dois tipos de indivíduos. Indivíduo é o que mesmo? É o real existente.

– Quantos tipos de indivíduos eu disse que existem?!

Dois! Os dois tipos de indivíduos que existem, um chama-se indivíduo físico, o outro se chama indivíduo vivo.

Então, o indivíduo físico e o indivíduo vivo. Esse livro é um indivíduo físico, o Pão de Açúcar é um indivíduo físico.

Aluno: O indivíduo físico não floresce nem morre.

Claudio: Não, você está enganado, está enganado: não é por aí, não! Não é por aí que você vai distinguir: se você usar essa distinção, você morre! Essa distinção não é suficiente! A única coisa que importa para nós é que no campo – agora bem rigoroso! – no campo da realidade existencial – “realidade existencial” parece uma tautologia, parece um pleonasmo: mas não é!…

[virada de fita]


Lado B

Na realidade existencial só existe o indivíduo; mas o indivíduo se divide em dois – indivíduo físico e indivíduo vivo.

– Uma galinha, por exemplo; o que é uma galinha? Um indivíduo… vivo!

– E o que é uma ameba? Indivíduo vivo!

– O que é o cristal? Indivíduo físico!

– O que é uma pedra? Indivíduo físico!

Então, a realidade é composta desses dois tipos de indivíduo – o indivíduo físico e o indivíduo vivo. (Tá?)

Aluno: A planta?!

Claudio: Indivíduo vivo!

– O cachorro? Vivo!

– E o Pão de Glicose? Físico!

Então, nós teríamos dois tipos de indivíduo: o físico e o vivo. (Tudo bem?)

– E a realidade seria constituída de quê? Dois tipos de indivíduo – um físico e outro… vivo.

Desse indivíduo vivo – eu estou apenas projetando para vocês entenderem! – é desse indivíduo vivo que vai sair o que se chama sujeito. Então, sujeito é uma categoria que emerge no indivíduo vivo.

– Como é que eu posso definir o sujeito?

É de uma simplicidade muito grande, nessa linguagem que eu estou usando para vocês! O sujeito é aquele que é capaz… ele é um indivíduo vivo, não é? O sujeito é aquele que é capaz de produzir um objeto mental.

– O indivíduo físico é capaz de produzir um objeto mental? Não! Dentre os indivíduos vivos alguns são sujeitos – aqueles que produzem objetos mentais. (Não é difícil! Está bem aqui? Ficou mal aqui, para você?)

Aluna: O objeto mental que é universal…

Claudio: Universal!

Aluna: Alguns indivíduos vivos produzem…

Claudio: Produzem o universal. E esses – para facilitar integralmente – eu estou chamando de sujeitos! Só para ser da maior simplicidade.

Agora, vamos lá:

– Quantos indivíduos existem?

Dois: Físico e Vivo.

– Existe mais alguma coisa fora isso? No mundo físico, existe mais alguma coisa fora isso? Só existe o indivíduo e o indivíduo se distribui em dois – físico e vivo. (Conseguiu entender?)

– A realidade é composta de quê? De indivíduos: físicos e vivos. Certo?

Agora – eu não vou dizer como os medievais iriam resolver essa questão que eu vou colocar agora, porque iria complicar para vocês. Eu vou colocar uma questão, que é espinosista – é inteiramente espinosista – e é deleuzeana. É o seguinte: sempre que nós formos pensar os indivíduos – vivos ou físicos – nós temos que pensar a gênese desses indivíduos.

– O que significa gênese? Como é que aparecem! [Como esses indivíduos aparecem], chama-se: a gênese desses indivíduos. (Tá?)

– Vocês entenderam essa colocação da gênese, que eu fiz?

Então, vamos outra vez?

O real é constituído de dois tipos de indivíduo: o físico e o vivo. Por exemplo, uma tela é um indivíduo físico. Quer dizer: isso vai nos trazer imensas preocupações. Então, a realidade é constituída de indivíduos vivos e de indivíduos físicos. Agora: o vivo e o físico pressupõem uma gênese. Então, vamos dizer: o pensador que não esgota o seu conhecimento na pesquisa do indivíduo vivo e na pesquisa do indivíduo físico, mas busca encontrar as forças genéticas que os produziram – até aqui tudo bem? – esses, que vão buscar as forças genéticas que os geraram, vão chamar essas forças genéticas – no caso do Deleuze, de singularidades e no caso do Espinosa, vamos dizer essência.

Então, a singularidade é anterior ao indivíduo. (Ficou difícil?) Ela é anterior ao indivíduo! Mas é a partir da singularidade…

Aluno: A singularidade seria a força genética?

Claudio: A força genética! Nós ainda não sabemos o que ela é… mas sabemos que essa singularidade não é uma realidade física, individual; mas – sem ela – os indivíduos físicos não existiriam.

Aluno: Isso é em Deleuze (não é?), a singularidade. E em Espinosa?

Claudio: Vamos usar – a essência.

Então, a partir de Espinosa, a essência seria a geradora da existência. Vamos dizer assim!…(Não é isso…, mas, por enquanto, é a única maneira que eu tenho para trabalhar com vocês!). Usando isso, eu passo a afirmar que todo e qualquer indivíduo – que pode ser físico ou vivo – que todo indivíduo físico ou vivo contém uma essência. Não há sequer um indivíduo que não tenha uma essência. (entenderam?) Eu estou colocando a essência como sinônima de singularidade ou força genética. Então, a partir disso, a nossa experimentação…

Essa informação que eu vou prestar agora, eu vou travar depois disso aqui, viu? Eu vou usar mais uma vez uma linguagem não espinosista: eu vou usar uma linguagem deleuzeana. Mas depois, não faz mal, isso não vai ter nenhuma importância!

Eu vou dizer assim:

Quando nós estamos vivos, nós fazemos experiências. E, constantemente, as nossas experiências são feitas com indivíduos – físicos ou vivos. Então, os físicos e os vivos esgotam o que se chama “o nosso campo empírico”.

– O que é um campo empírico?

É aquilo preenchido por indivíduos físicos e indivíduos vivos – que são aquilo que nós experimentamos. (Você entendeu? Tranquilamente?)

Então, o universo existencial eu estou chamando de mundo empírico.

– O que é o mundo empírico?

É todo o universo existencial. E quais são os dois seres que habitam o mundo empírico? O físico e o vivo. E nesse universo que se dá todo o nosso mundo experimental. Todo o nosso campo experimental se dá nesse universo.

Agora, a singularidade está nesse mundo empírico?

Não! O mundo empírico é o indivíduo físico e o indivíduo vivo.

Aluno: O que não está é a essência e objeto mental?

Claudio: Vamos excluir o objeto mental. Sim, não está – mas exclui, agora da pesquisa, para não te dar nenhuma complicação!… Fica, na pesquisa, só com o indivíduo e o singular, porque aí você vai entender… Eu estou dizendo que o universo empírico – o mundo empírico – contém dois elementos, dois elementos individuais: o indivíduo físico e o individuo vivo. É isso que nós vamos ter que entender! Você pode sair aí por Ipanema, o que você vai achar aí pela sua frente? Nuvem, o que é uma nuvem? Indivíduo físico. Chuva? Indivíduo físico. E se você achar uma barata? Indivíduo vivo. Você não vai achar outra coisa, só indivíduos físicos e indivíduos vivos! Então, nosso campo experimental se dá com indivíduos físicos e indivíduos vivos. (Tá?)

Agora: a singularidade não é empírica! Por que não é empírica? Porque no empírico só há indivíduos. A singularidade é a gênese desses indivíduos. Então eu vou dizer que as singularidades – vamos usar, não é espinosista! – são transcendentais. (Certo? Vocês conseguiram entender?)

Aqui, então, agora eu distribuo em três campos:

→Nós temos um campo chamado objeto mental – que é onde estão os universais – que pressupõem uma mente, uma subjetividade, uma consciência;

→Nós temos os indivíduos – que são os povoadores do mundo empírico;

→Nós temos a singularidade – que povoa o transcendental.

Então, são três povos: o povo da mente – os universais; o povo do empírico – os individuais; o povo do transcendental – as singularidades. Vocês conseguiram entender aqui?

A ciência trabalha com o campo empírico. Então, a ciência lida com o quê? Com os indivíduos. (Está bem?) Aqui, a gente tem que fazer isso radicalmente. Qualquer variação na frente, nós temos essa sustentação!

Então, você tem o cientista, ele trabalha com o quê? Com os indivíduos físicos e os vivos. Esses indivíduos vivos podem pertencer à Biologia, podem pertencer à Sociologia, podem pertencer à Psicologia – pouco importa! E os físicos podem ser átomos, podem ser montanhas, podem ser estrelas, mas são indivíduos vivos e indivíduos físicos, (tá?) (Compreendido aqui?)

Aluno: Compreendido, mas nem tanto, porque eu acho que o cientista também trabalha com objetos mentais!

Claudio: Trabalha! Mas não é o problema para nós neste instante. O problema para nós agora… Vamos dizer que nós não somos mais filósofos – nós somos exploradores; nós somos amigos do Cristóvão Colombo. Então, nós temos três países para a gente ir: temos o país dos transcendentais, onde vivem os singulares; temos o país dos empíricos, onde vivem os individuais; temos o país dos mentais, onde vivem os universais. Nós vamos ao país dos empíricos: pronto, nós vamos lá! Então, nós chegamos ao país dos empíricos – o que é que nós encontramos? Indivíduos físicos e os vivos. (Posso ficar tranqüilo, que nós estamos no país dos empíricos, no país dos indivíduos?)

Nesse país dos indivíduos é onde nasce a ciência. Então, a ciência nasce em que mundo? Nasce no mundo empírico! Então, vai haver a ciência dos indivíduos vivos, que é chamada a ciência do orgânico. E a ciência do indivíduo físico, que, no mundo moderno….

[pequeno defeito na fita]

A avaliação científica do indivíduo físico foi basicamente feita no século passado. E, ao ser feita essa avaliação, surgiu uma ciência chamada termodinâmica. A termodinâmica surgiu para avaliar quem? O indivíduo físico. Até então, o modelo de avaliação do indivíduo físico era feito por Newton, no século XVII. Até que, no século dezenove, surge a termodinâmica, que vai avaliar o indivíduo físico. (Prestem atenção: quando tiverem dificuldade, vocês coloquem!)

Nós estamos em que campo? Empírico! Isso não está acontecendo na mente de ninguém – está acontecendo no empírico: estão entendendo?

Quando a ciência examina o indivíduo físico, a ciência diz que o indivíduo físico tende para o que se chama entropia. O que quer dizer isso? É a aplicação de uma ciência chamada termodinâmica aos indivíduos físicos. Essa ciência, chamada termodinâmica, aplica, nos indivíduos físicos, o que se chama – a a segunda lei da termodinâmica.

– O que é a segunda lei da termodinâmica?

A segunda lei da termodinâmica diz que todo o mundo físico – logo, todos os indivíduos físicos – tendem para uma igualização: igualização térmica. Por exemplo: se você deixar aqui um copo de café quente, ele vai ganhar a temperatura ambiente. O que significa isso? Que esse café quente perdeu calor. (Entenderam?) Ele perdeu calor. E esse calor que esse café quente perdeu, ele não pode mais recuperar. O que significa isso? Os indivíduos físicos estão perdendo a sua potência térmica. Perdendo a sua potência térmica, vai chegar um momento em que eles não terão mais potência térmica. Nesse ponto, todos os indivíduos físicos se igualizam – e no universo não existe mais nenhum movimento!

Eu estou dizendo que os indivíduos físicos – conforme a segunda lei da termodinâmica – vão cair numa igualização térmica. A igualização térmica implica em dizer que não vai mais haver nenhuma diferença no universo – isso se chama morte térmica do universo ou entropia. (Entenderam?)

– O que é entropia ou morte térmica?

Dá-se no indivíduo físico. (Tá?)

Aluno: A ciência orgânica trata dos indivíduos vivos e a termodinâmica trata dos indivíduos físicos?

Claudio: Isso!

Agora: quando a ciência orgânica entra, com o que ela vai trabalhar?

Com os indivíduos vivos! E quando você começa a trabalhar com os indivíduos vivos, vai nascer uma prática chamada biologia evolutiva. (Eu queria que vocês anotassem, porque tudo isso vai ser necessário para o nosso trabalho.) Essa biologia evolutiva trabalha com fósseis. Vocês sabem o que são fósseis? São determinados seres vivos que se fossilizam. Então, você os encontra nas pedras, em uma porção de lugares… e isso permite à biologia evolutiva saber que a vida sofre um processo evolutivo. A vida está envolvida num processo evolutivo. No sentido de que a vida vai sofrendo um processo de aumento de complexidade. Por exemplo: as amebas em comparação a um homem: há uma diferença brutal! Porque o homem tem – no mínimo que eu posso dizer para vocês – um sistema nervoso altamente elaborado e a ameba não tem. Então, eu posso tranquilamente dizer que o vivo está dentro de um processo evolutivo. (Entenderam?)

Aluno: O fóssil é um indivíduo físico ou vivo?

Claudio: Olha, é um indivíduo que foi vivo.

Aluno: Passa a ser físico?

Claudio: Ele é um indivíduo físico, mas tem traços do vivo para você examinar. Enquanto cientista, você pode examiná-lo como um indivíduo vivo. (Tá? Você entendeu?)

O que eu acabei de dizer para vocês? Eu acabei de dizer que os indivíduos físicos tendem para a morte; e o indivíduo vivo tende para um aumento de complexidade. Não é uma contradição no mundo empírico? Há uma contradição aparente no mundo empírico, ou não?

– Qual é a contradição? É o fato de que os indivíduos físicos tendem a uma morte térmica e os indivíduos vivos estão aumentando a sua complexidade. (Entenderam aqui?)

Aluno: A entropia só é válida para o indivíduo físico?

Claudio: Para o indivíduo físico!

Então, a gente vai usar o seguinte: como o indivíduo vivo aumenta a sua complexidade…, nós vamos dizer que o indivíduo vivo é neguentrópico. Então, nós teríamos uma diferença aqui mais ou menos marcada.

Aluno: Neg?

Claudio: Negue-entrópico. Negue, como se diz negar. (Entenderam aqui?) O vivo é neguentrópico e o indivíduo físico, entrópico. Então, haveria nitidamente esse processo.

Agora: todo indivíduo físico é entrópico, ou seja: ele perde calor e não recupera mais esse calor. (Certo?) Então, se o universo tiver uma quantidade X de indivíduos físicos, esse universo vai chegar necessariamente à morte entrópica. Ele vai chegar! Mas eu coloquei que o indivíduo vivo é neguentrópico, porque ele aumenta a sua complexidade. A partir disso que eu disse, eu já vou fazer uma colocação altamente deleuzeana e altamente espinosista. Eu vou dizer que a vida não pode ser pensada somente pensando-se o indivíduo vivo. Na hora em que se pensar a vida, tem-se que pensar no indivíduo vivo e no meio no qual ele vive. Sempre que se pensar a vida, é o indivíduo + o meio. (Vocês entenderam o que eu disse?) Então, a diferença do pensamento deleuzeano, é que quando ele penetra no mundo empírico para pensar a vida, ele não pensa a vida somente [em termos de] indivíduo. Ele pensa o indivíduo e o meio. (Vejam se vocês entenderam isso?)

Então, eu sou um pensador da vida. Eu vou me envolver com o campo empírico – o que é que eu vou pensar? Indivíduo e meio. Vocês não podem esquecer isso! Não podem esquecer isso – porque é básico! É o indivíduo e o meio que explicam o pensamento da vida. Não há possibilidade de você pensar a vida sem pensar o meio. Então – eu queria que vocês pensassem isso – a vida é exatamente idêntica a um caracol. O caracol não traz com ele o seu meio, que é a sua casa? Todo vivo implica o meio.

A vida traz o meio. Vamos dar um nome para esse meio. Vamos dar um nome da maior facilidade. Vamos chamar esse meio de bloco de espaço-tempo. (Não é difícil não, vocês vão ver, depois que vocês dominarem… vocês não vão ter nenhuma dificuldade! É muito simples!) Se não houver espaço e tempo, não é possível haver vida. Então, bloco de espaço-tempo. Não é possível haver vida sem bloco de espaço-tempo. Esse bloco de espaço-tempo pode ser chamado, em termos práticos, de meio geográfico ou meio histórico. (Vejam se vocês entenderam?) O bloco de espaço-tempo pode ser chamado de meio geográfico ou meio histórico. Por exemplo: você pega um vivo que habita um bloco de espaço-tempo hostil. Por exemplo: esse bloco de espaço-tempo hostil é o meio geográfico do Alasca. Certo? É um meio geográfico hostil. Aí, um historiador chamado Toynbee, que pensa exatamente dessa maneira, Arnold Toynbee, vai dizer que não há vida sem que haja um meio. E a função do vivo é dar uma resposta ao desafio que o meio lhe lança. (Nós vamos ler Toynbee!…)

O que eu chamei de meio – que é o bloco de espaço-tempo – pode ser o meio geográfico ou o meio histórico (tá?). Então, quando você pega o Pólo Norte, ele é um meio geográfico, que você não consegue historiar. Inclusive, porque para viver no Pólo Norte, você não pode levar nem tijolo nem cimento. Você tem que fazer iglus, que é feito com o próprio gelo. Os vivos desse meio-geográfico ou desse bloco de espaço-tempo têm que estar constantemente dando resposta ao desafio que esse meio faz para eles. (Vocês entenderam? Querem perguntar alguma coisa?)

Aluno: Isso é Darwin, não é?

Claudio: Não. Não tem nada de Darwin aí. Nada de Darwin! Tem de Lamarck, de Darwin, não. Você vai ver depois que não tem nada de Darwin. De Lamarck tem. (Certo?)

(Vamos voltar outra vez. Vamos agora facilitar as coisas.)

Nanook, o Esquimó (1922)É… Rua Djalma Ulrich, não sei o número, uma locadora de cinema – chama-se Polytheama. O dono dela chama-se Júlio – é a melhor locadora do Brasil, sem dúvida nenhuma, é a que eu trabalho, viu? Nessa locadora vocês vão apanhar um filme chamado Nanook, o esquimó – que é o nascimento, no cinema, do que se chama documentário. O nome do diretor é Robert Flaherty. Esse documentário – que dura uns quinze minutos – é a história de um indivíduo vivo, que é o Nanook, mais as suas famílias, num meio geográfico. O meio geográfico é o bloco de espaço-tempo – que produz constantes desafios a ele – e ele responde. Então, o indivíduo vivo, vive num bloco de espaço-tempo, que se chama meio geográfico ou meio histórico. Esse meio geográfico, no caso do Nanook, é um meio geográfico hostil.

[fim de fita]

Aula de 05/09/1995 – Uma introdução à semiótica: Peirce, Deleuze, Maine de Biran

Temas abordados nesta aula são aprofundados nos capítulos 2 (O Extra-Ser e a Similitude); 7 (Cisão Causal); 10 (Estoicos e Platônicos); 11 (Conceitos); 12 (De Sade a Nietzsche); 18 (Proust, o Ponto de Vista ou a Essência) e 20 (Linha Reta do Tempo) do livro “Gilles Deleuze: A Grande Aventura do Pensamento”, de Claudio Ulpiano.

Para pedir o livro, clique aqui.


Parte I
No início da aula vai haver uma pequena surpresa com a nomenclatura. Na minha observação, não vai haver dificuldade de entender! E depois vem o momento, que eu não sei se eu vou atingir hoje, em que aí, sim, o entendimento vai começar a ficar realmente difícil. Porque o meu objetivo nesta aula é introduzir a semiótica; fazer uma introdução à semiótica. Então, eu sei a dificuldade que isso vai acarretar, porque eu não posso sequer opor semiótica a semiologia, fazer essas oposições, porque, num curso de curta duração como este, não há tempo para isso.

(O que eu vou fazer é uma exposição e sempre que eu for obscuro, em qualquer nível que eu for obscuro, e vocês não entendam, levantem o dedo, tá? Porque realmente é uma prova pela qual a gente vai ter que passar aqui, agora).

No século XVIII, um filósofo chamado Maine de Biran toma como objeto de sua investigação, como a grande questão do seu trabalho, a compreensão do que é, do que nós chamamos de eu, ego. Não é propriamente uma psicologia: ele não vai estudar os conteúdos do eu, os conteúdos do ego; mas vai tentar entender o que é exatamente o eu. E ele coloca que sempre que o eu se manifesta, ele se manifesta através de um esforço. Há, na manifestação do eu, a presença de um esforço. Por exemplo, Nina e a trapalhada dela com esse gravador aqui; vocês escrevendo enquanto eu falo; um sonho; uma lembrança… Qualquer participação do eu, qualquer manifestação de presença do eu implica numa resistência. Sempre que o eu se manifesta, você dá conta de que ele está presente ― porque há uma resistência à sua aparição. Por isso, o Maine de Biran define o eu ― isso que nós chamamos de eu ― como sendo um esforço e uma resistência. Sempre que o eu aparece no mundo aparecem essas duas figuras: o esforço e a resistência. Basta isso daqui por enquanto; basta dizer, por enquanto, que a existência do eu não se daria sem que houvesse, a partir da sua presença, alguma coisa que resistisse à sua efetuação. Se eu, por exemplo, determino que meu braço se levante, ou se eu pisco os olhos ou se eu produzo um pensamento, isso tudo vai implicar num processo de resistência. E ele afirma, então, que quando nós pensamos o eu, é preciso um par de conceitos.

(Cuidado com a dificuldade, ou se escapar).

É preciso um par de conceitos. Então,  ele coloca, no princípio, eu = esforço e resistência. Em segundo lugar, sempre que a gente pensar em homem, e um homem efetuando a sua existência, sempre que a efetuação da existência de um homem for pensada, há a implicação de que essa efetuação se dê num determinado meio. A  existência, qualquer tipo de existência, não precisa nem ser a existência de um homem, implica num bloco de espaço-tempo. Essa expressão,  bloco de espaço-tempo, quer dizer aqui e agora. Tudo que existe, existe necessariamente aqui ― que quer dizer espaço; e agora ― que quer dizer tempo.

Quando eu aplico “existir” num bloco de espaço-tempo, numa linguagem literária, eu transformo existência e bloco de espaço-tempo, colocando “personagem” no lugar de existente e “meio histórico” no lugar de bloco de espaço-tempo. Uma personagem se efetua dentro de um meio histórico. Quer dizer, sempre que você for pensar o homem ou mesmo o existente, você precisa novamente de um par de conceitos: homem meio.

Comecei com Maine de Biran e disse da necessidade de um par de conceitos ― que eu chamei de esforço e resistência. Agora, se eu me envolvo e vou querer compreender o que vem a ser o homem, eu jamais compreenderei o que ele é se eu não incluir em suas práticas o meio de onde ele retira a energia para a sua existência. O que implica em dizer que o meio que o homem habita precisa ser constantemente renovado, porque ele tende à entropia, porque é desse meio que o homem retira a sua energia. E aqui eu junto então esses dois processos: esforço-resistência e homem-meio. E passo a dizer e vou definitivamente ficar aqui, afirmando que o que define o homem é o habitat.

― O que é o homem? O homem é aquele que habita, é aquele que ― necessariamente ― está num meio. É uma expressão difícil, porque eu não estou dando importância ao passado dessa expressão ― que se chama cogito cartesiano; o que está me importando aqui é que o homem se constitui através de um meio. Constituindo-se através de um meio, ele se efetua necessariamente no interior de um meio: não há possibilidade de o homem se constituir sem que esteja associado a um meio qualquer. Esse meio pode ser o clima, pode ser a terra, pode ser a linguagem, pode ser um automóvel…  Ou seja, o meio ― é onde o homem efetua a sua existência; a efetuação de sua existência implica na presença de um meio. Daí essa expressão aparentemente solta, (eu tenho que usar assim, não tem outra maneira…) que é o cogito que eu estou fazendo: eu habito ― o homem habita; ele está num meio. O meio em que ele habita faz com que esse homem vincule a sua existência a esse meio: o meio solicita a constante participação  do homem  ― meio e homem formam um vínculo. E esse vínculo ― formado entre o meio e o homem ― recebe dois nomes: um é representação orgânica e o outro é imagem-ação. Ou seja, essa vinculação do homem com o meio torna o homem um actante: ele age nesse meio. E a ação que ele exerce nesse meio torna o homem entendido por um novo par de conceitos ― que é personagem-meio.

Apenas apontando (ainda sem nenhuma condição teórica de entrar), o surgimento do cinema-tempo ― é quebrar o vínculo entre o homem e o meio; separar o homem do mundo; quebrar a representação orgânica. O que eu estou chamando de representação orgânica é esse vínculo homem-meio ― que na linguagem utilizada por Deleuze em seu livro chama-se esquema sensório-motor.

O homem é constituído para receber impregnações desse meio histórico que ele habita ― e dar respostas a esse meio: essas respostas constituem a imagem-ação. Por exemplo, uma personagem no faroeste, uma personagem no mundo dos gangsteres, uma personagem num mundo histórico qualquer ― é sempre esse processo de um meio produzir uma impregnação na personagem. De alguma maneira, o meio impregna a personagem, e ela se vincula a esse meio. Esse vínculo da personagem com o meio ― eu também posso chamar meio de mundo ― forma a representação orgânica.

― O que é uma representação orgânica? É o homem vinculado a um determinado meio histórico. É daí que nasce tanto a literatura quanto o cinema realista. Esse vínculo sensório-motor, que eu acabei de colocar, chama-se imagem-ação; ou, se quisermos seguir o Maine de Biran, o par de conceitos esforço e resistência; ou ainda, noutra linha, representação orgânica ― que é a solicitação que um meio qualquer faz de um homem. Há uma exposição histórica de um historiador chamado  Toynbee, alguns alunos aqui já conhecem mais ou menos isso, que denomina essa relação de desafio e resposta: o meio desafia e a personagem responde. O  importante aqui é a presença dos pares de conceito.

É um momento difícil esse daqui, é um momento teoricamente difícil. É… de repente… uma aula está sendo dada e a preocupação da aula não é propriamente a compreensão dos conceitos que eu estou dando. Os conceitos são as ideias. Por exemplo, esforço é um conceito; resistência é um conceito; meio é um conceito; personagem é um conceito… Então, a minha preocupação é nítida. Não é explicar para vocês o que são esses conceitos ― “por que esforço, por que resistência, por que personagem, por que meio, por que desafio, por que resposta?…”

A minha preocupação é mostrar que quando eu aponto para esse mundo ― que eu chamei de representação orgânica ou de esquema sensório-motor ― para falar dele, eu uso necessariamente um par de conceitos. É muito estranho, eu sei. É estranho… uma novidade quase que absoluta para quem estuda, saber qual é a maior preocupação que eu tenho. Porque, quando você dá  um conceito, quando você expõe uma ideia, quando você está diante de uma ideia problemática e difícil, o pensador se envolve com a ideia e procura fazer com que aqueles que o ouvem entendam aquela ideia. A minha preocupação  não é essa, a minha preocupação é dizer que esse mundo ― que eu chamei de representação orgânica ou de esquema sensório-motor ― só se explica por pares de conceitos: para entendê-lo, há que se usar sempre dois conceitos ― esforço e resistência, homem e meio, personagem e situação, ação e reação, ação e paixão. Ou seja,  quando o mergulho que é feito pelo pensamento encontra o que se chama realismo, e você vai organizar o seu pensamento no realismo, só há um modo: aplicando pares de conceitos. Porque no realismo ― eu forço sempre um pouquinho, até que vocês possam entender ― porque o elemento genealógico do realismo…

― O que quer dizer elemento genealógico de alguma coisa? É aquilo que constitui aquela coisa. Ou seja, os elementos que constituem o realismo ― que eu estou colocando como seu elemento genealógico ― são o duelo e o dueto.

Se um determinado ser se apresenta para você, e você quer compreendê-lo, você vai observar que nele existem sempre ou duelos ou duetos. A partir daí você sabe que você só compreende aquele ser com pares de conceitos ― porque ele só se explica pelo conflito, pela oposição, pelo combate… O mundo realista só pode ser pensado se sempre aplicarmos sobre ele os pares conceituais.

(Agora eu acredito que atingi alguma coisa!)

Quando o Maine de Biran vai pensar esse mundo, ele diz que esse mundo é constituído por um esforço do que ele chama de eu ― o eu é um processo de esforço; mas que sempre que o eu emerge, aparece uma resistência. Então, nunca, jamais o eu pode se afirmar sem a composição  com uma resistência. E nisso, ele reproduz todos aqueles que tentaram dar conta do que se chama realismo ou representação  orgânica no cinema imagem-ação.

Vento e Areia (1928)O que existe nesse universo é a presença necessária de dois: o faroeste, o duelo; por exemplo, aquele famoso filme  O Vento, do Sjöström  ― esse filme maravilhoso ― é o confronto que a personagem faz com o vento…  A mulher faz o confronto com o vento, faz o confronto com o cowboy apaixonado por ela, faz o confronto com o comerciante que quer pegá-la à força, faz o confronto com a família… Então, isso  marca exatamente o que é esse mundo realista. No mundo realista há sempre os pares de composição e de oposição ― mas são sempre os pares. O cinema realista começa com as oposições; e, para concluir seu happy-end, passa das oposições para as composições.

 

(Agora é que vai entrar o mais difícil ― a semiótica… vocês vão ter que aprender, tá?).

― O que é semiótica? A semiótica é uma ciência, ela se pretende uma ciência, ciência do semeion ― palavra grega que quer dizer signo ou sinal. A semiótica é uma ciência do signo. Então, é preciso saber o que é um signo, para saber como pode haver uma ciência do signo.

Seria simples para mim se, a partir deste instante, eu começasse a explicar semiótica para vocês e nessa explicação eu aplicasse os saberes da semiótica no mundo realista. Porque eu expliquei ligeiramente o mundo realista… e aí eu pegaria a teoria dos signos, conforme o Peirce constrói e aplicaria no mundo realista. Mas eu não posso fazer isso… porque ao lado da semiótica existe uma ciência dos signos chamada semiologia. São duas ciências dos signos: uma chamada semiótica e outra chamada semiologia. Eu acho que a saída da gente nesse momento é uma ligeira noção do que vem a ser signo, tentar compreender o que é signo, da maneira mais simples possível. Eu vou dar pra vocês uma explicação mais ou menos  clássica que eu costumo fazer ao dar um curso de semiótica, para que a gente entenda exatamente o que é.

[Claudio pega uma caneta…]

Quando a gente pega um objeto ― evidentemente isso daqui é um objeto técnico ― o objeto técnico vai ficar bem claro na exposição que eu vou fazer. Os objetos técnicos ―  por sua própria formulação de objetos técnicos ― têm uma utilidade: eles são feitos para serem usados; eles servem para uso. Por isso, eles vão receber um nome clássico, inclusive na antropologia, na semiótica, na economia… Eles vão receber o nome de valor de uso ― a gente usa os objetos técnicos. E esse mesmo objeto pode ter um outro valor ― que é o valor de troca. Ao invés de usá-lo, você o troca por alguma outra coisa que você precise mais do que esse objeto que está aqui.

Então, o mesmo objeto traz com ele dois valores: o valor de uso e o valor de troca. Mas se você pegar esse objeto que está aqui… por exemplo, eu pego esse objeto e dou para a Sílvia de presente. O que eu dei para a Silvia de presente foi um valor de uso; mas se amanhã ela tiver uma crise financeira e vender esse objeto, ele vai-se transformar em valor de troca. Mas aí eu dou esse objeto para ela, e ela vai para outro lugar qualquer. Na hora em que ela for escrever uma carta, por exemplo, e ela pegar esse objeto e começar a escrever a carta, ela vai olhar para esse objeto e esse objeto vai evocar a minha imagem. Na hora em que o objeto evocar a minha imagem,  ele já não é mais valor de uso, ele não é mais valor de troca ― ele se torna um signo: o signo é alguma coisa que evoca outra para alguém. (Entenderam aqui?) Alguma coisa que evoca outra coisa para alguém.

Então, essa definição de signo ― vocês vejam que é uma definição tripla: alguma coisa que evoca outra coisa para alguém. Esses três nomes ― alguma coisa ― que evoca outra coisa – para alguém ― levam a semiótica a ser constituída por três especialidades: a semântica, a sintática e a pragmática. As três estão diretamente envolvidas com essa definição de signo: alguma coisa que evoca outra para alguém.

Como eu acabei de explicar para vocês, qualquer coisa no mundo pode ser signo: qualquer coisa. Um pedaço de cadeira, uma caneta, um gesto, um raio de sol, uma voz, um gemido… Então, o signo tem o poder de evocar alguma coisa que não é ele próprio. Ele traz para a cena algo que, se não fosse ele, não  estaria presente: ele é uma espécie de indutor, é quase que um… um místico ― ele é um místico: ele traz alguma coisa que está ausente, ele torna aquela coisa presente. Mas, o mais importante é que ele traz aquela coisa para alguém. Esse para alguém é que constrói a noção de pragmática ― colocando-se aí a noção de signo como aquilo que aparece, aquilo que tem presença. O signo, como diz o Peirce, é phaneroscópico, que vem da palavra phanerón ― que quer dizer aparecer. O signo aparece; aparece para alguém.

Nesse processo de compreensão do que é o signo, do que é a semiótica, Peirce fala em três ciências: a semântica, a sintática e a pragmática (Eu agora não vou falar sobre elas); e fala também na existência de três tipos de signos ― o índice, o ícone e o símbolo. Seriam os três tipos de signos, segundo Peirce.

(Eu vou fazer uma redução máxima para poder ter rapidez aqui.).

Então, o ícone é um signo natural que você apreende por semelhança: por exemplo, eu vejo um retrato da Andréa, eu me lembro da Andréa; eu vejo um retrato de uma cadeira, eu me lembro da cadeira. Então, o signo ícone faz uma relação, por semelhança, com o que ele representa. O índice é um signo que de algum modo nos projeta para o futuro. Por exemplo, você vê uma quantidade de nuvens negras no horizonte e isso é índice de chuva. Como por exemplo, Robinson em Speranza vê a marca de um pé na areia e diz: “Há um índio nesta ilha” (Tá?). Isso é um signo indicial. E o símbolo é um signo linguístico, ele  pertence ao campo da linguagem ― e é aqui que aparece a grande marca da distinção entre a semiótica e a semiologia: é que a semiologia só trabalha com o símbolo.

(Eu queria que vocês prestassem bastante atenção a essa exposição e fizessem um sinal se qualquer coisa obscurecer…)

Então, a diferença da semiótica para a semiologia (é tão estranho o que eu vou dizer…) é que a semiologia é um nome secundário. O nome principal duma ciência que estuda os signos linguísticos é linguística. Ou seja, toda uma tradição francesa, uma escola francesa que vem de um pensador chamado Ferdinand de Saussurre, constrói o seu sistema de signos modelado pela semiologia. É isso que vai resultar na psicanálise de Lacan. Essa psicanálise… mais ou menos em alto e baixo (não é?), porque a psicanálise não consegue mais subir muito, está com pouco  ar. Então, você teria duas ciências do signo: uma chamada semiologia, centrada no signo linguístico, outra chamada semiótica, que procura dedicar-se à amplidão de todos os signos.

(Ficou bem claro isso, não? Infelizmente eu tenho que entrar por aqui, ouviu? Eu sei que é terrível, mas  não tem outro jeito).

Quando nós estamos na semiologia, o modelo… Olhem essa palavra – modelo. Essa era a palavra mais fácil para se entender há vinte anos atrás, assim como há cinquenta anos palavras do tipo estrutura já estavam presentes no vocabulário intelectual, no vocabulário das ciências humanas. O modelo dessa ciência do signo é a língua… (atenção para o que eu vou dizer). A semiologia  coloca a língua como modelo ― qualquer língua: a brasileira, o português, o alemão, o francês, o chinês… “Qualquer tipo de língua”― é o modelo da semiologia.

― Então, o que faz a semiologia? Ela procura entender os componentes de qualquer língua (e aplica esses componentes no que nos interessa ― que é o cinema), o que torna a semiologia a ciência da dupla articulação. Ou seja, todas as línguas que vocês encontrarem têm necessariamente dupla articulação. A primeira articulação (eu vou usar assim)  chama-se a articulação do semantema. A segunda articulação é a articulação do fonema.

(Eu vou explicar para vocês:)

Quando você está envolvido com a semiologia… A semiologia é a ciência do signo linguístico  e, como eu disse para vocês, o modelo da semiologia é a linguística ― e o que a linguística estuda são as línguas dadas; e toda língua tem uma dupla articulação. A primeira articulação de toda língua é a presença, na língua,  de dois operadores semiológicos ― um chamado semantema e outro chamado morfema.

O semantema é uma palavra que está na língua e que se relaciona com alguma coisa fora da língua: por  exemplo, “cadeira” – aponta para um objeto fora da língua; “mesa” – aponta para um objeto fora da língua. O semantema é uma propriedade de um elemento do signo linguístico que aponta para alguma coisa exterior.

E, de outro lado, o que ele chama de morfema, que é o signo linguístico que, à diferença do semantema… Agora, com mais clareza,  o semantema se constitui por dois elementos: ele tem que ter um significado dentro dele, porque se ele não  tiver um significado você não o compreende; e ele tem que ter um referente.

― O que quer dizer referente? Quer dizer: aquilo sobre o qual o signo está falando. Por exemplo, eu digo “copo”. Copo é um signo linguístico, é um semantema, é o significado e esse objeto aqui é o referente.

Então, nós temos na nossa língua uma série de palavras ― os substantivos, os adjetivos, e eu vou incluir até os verbos ― que são semantemas, porque são indicadores de coisas, objetos e acontecimentos externos à própria língua. Enquanto que o morfema não tem um campo referencial; só tem significado. O morfema é a conjunção e a preposição ―  “para que”, “de”, “em que” ­– que possuem significado, mas não referente.

Então, os modelos da primeira articulação são o semantema e o morfema. E isso esgota a primeira articulação: não  precisa de mais nada para compreender a primeira articulação  do signo linguístico. Mas quando você vai para a segunda articulação ― que se chama fonema ― é que começam a surgir as grandes questões, porque o fonema não é um semantema e não é um morfema. Não sendo semantema e não sendo morfema, nós vamos entender o fonema pelo que se chama definição negativa: ele não tem significação intrínseca e não tem referente extrínseco. Ou seja, quando você tem um fonema ele não significa nada e, ao mesmo tempo, ele não indica nada. Nem significa nem indica.

― Como foi que eu falei? Significação intrínseca e designação extrínseca. (Vocês entenderam? Vamos voltar?).

― O que é que o semantema tem? Significação intrínseca e designação extrínseca. Por exemplo, copo. Você sabe o que é um copo e aponta para um objeto. Já o morfema, não; ele tem significação, mas não tem designação. E aí aparece o fonema, que nem designa nem significa.

Então, aparece o fonema: um elemento no campo da língua que não tem nem significado nem referente. E o fonema vai funcionar por relações oposicionais: é a relação de um fonema com outro que vai constituir os morfemas e os semantemas. Então, os fonemas seriam os elementos, as singularidades constituintes dos semantemas e dos morfemas. Esses fonemas não são soltos, são estruturados. Por isso, na língua, é a estrutura do fonema que constitui todo o campo do significado e da referência. Determinados autores de cinema servem-se desse modelo da semiologia  e fazem a estranha afirmação de que o cinema é uma língua. Se o cinema é uma língua e a língua tem semantemas, morfemas e fonemas, no cinema existiriam cinememas.

Também Lévi-Strauss, que é antropólogo, por exemplo, pegou esse modelo ― e a obra dele é a leitura de mitos, é a compreensão da constituição de um mito. Aplicando o modelo  da língua, do signo linguístico, (conforme eu expliquei para vocês), da chamada dupla articulação, vai encontrar um elemento. Qual o nome desse elemento? [Esse elemento chama-se  mitema]

[fim de fita]


Parte II

(…) São os planos do filme…

Aluno: Quem produz essa noção de cinemema?

Claudio: Essa noção? Você  pode colocar na base disso aí,  o Christian Metz, mas se você ler aquele magnífico livro do Pasolini Experiência Herética (vocês encontram em português, é um livro maravilhoso), o Pasolini ainda usa o cinemema. (Mais na frente eu vou falar mais sobre isso, colocando essas questões para vocês). Deleuze envolve-se com o cinema e desfaz o que se chama… agora eu vou usar dois nomes, um que é  belíssimo… Eu disse que o signo linguístico chamava-se símbolo (não foi isso?). Signo linguístico – símbolo.  Símbolo  ou significante (pode usar esse nome). O signo linguístico chama-se símbolo ou significante.

Esse modelo da língua se aplica em cima de tudo ― é o que se chama despotismo do significante: aplica-se esse modelo em cima de qualquer coisa. Para você compreender, você  aplica a dupla articulação e aí nasce o que se chama estruturalismo.

Quando você pega a obra do Deleuze ― só nesse ponto que vai-me interessar  ― ele não desfaz a ideia de fonema, (o que seria uma tolice);  o que ele desfaz é a ideia de estrutura.  Ou seja, Deleuze não aceita o domínio da semiologia sobre o cinema e vai se associar com um pensador chamado Peirce que é o que faz a semiótica. Ele se associa com esse pensador para poder pensar o cinema não só como uma imagem, mas também como um processo de signos.

(A aula está muito difícil?… Como é que está? Está dando para acompanhar?).

O que está havendo aqui agora é que quando a gente estuda semiologia…

(Olha, toda essa aula de semiologia e de semiótica  que estou dando, a partir de agora nós vamos tocar nessas questões em todas as aulas. Em todas as aulas. Vocês vão pegar o que vocês puderem, porque nós vamos crescer nisso daqui).

Quando você trabalha na semiologia, você encontra o que se chama dicotomia ― marquem esse nome! A linguística e a semiologia são dicotômicas: significante-significado, língua-fala, código-mensagem, sintagma-paradigma… a semiologia só trabalha com esses pares de signos. O tempo todo ela trabalha com isso.

Quando nós passamos para o Peirce (e a entrada que estou fazendo é muito difícil), nós abandonamos a dicotomia e passamos para a tricotomia: o Peirce só trabalha com três signos, são sempre três ― símbolo, ícone, índice, e assim por diante. Esse movimento de passagem da semiologia para a semiótica, ou melhor, a associação efetuada por Deleuze em seu trabalho para entendimento do cinema compreende a exclusão da semiologia e a inclusão da semiótica.

A partir de agora eu vou explicar. Por que agora eu posso fazer isso? Porque eu vou fazer essa primeira explicação através do exemplo que eu já dei ou da narrativa que eu fiz sobre esforço-resistência, homem-meio, personagem-situação.

Peirce levanta um tema que é profundamente fora dos quadros do senso comum. Ele acha que tudo aquilo que aparece ― ou seja, o céu azul me aparece, um gemido me aparece, a textura dessa mesa me aparece, o gelado desse copo me aparece ― tudo que aparece é um signo. Por isso o uso que eu fiz, agora com mais precisão, da palavra phaneroscopia ou da palavra fenomenologia. Quer dizer, aquilo que aparece é um phanerón, aquilo que aparece é um fenômeno. Sempre que você estiver diante de alguma coisa, essa alguma coisa é um signo. (Estão acompanhando?) E ele vai dividir esses signos em primeiridade, segundidade terceiridade.

É um momento grave das nossas aulas, essa é a quinta aula,  já na aula passada eu fiz um tremendo esforço  para colocar o problema das vibrações das imagens. E nessa aula eu coloco as três definições  de signo, feitas pelo Peirce: primeiridade, segundidade e terceiridade. (Não importa o que sejam essas três, ou melhor, talvez seja uma tolice o que eu esteja falando, mas traz vantagens na compreensão).

Na Grécia, dentre outros, houve um debate entre um suposto filósofo chamado Sócrates e um grupo de homens chamados sofistas. E nesse debate, que era um debate sobre a Beleza, o Sócrates perguntava: O que é a beleza? E os sofistas respondiam, dando exemplos: uma égua, uma panela, uma virgem. Ou seja, o que Sócrates queria era a definição de beleza ― como a gente faz quando tem um objeto geométrico. Se vocês me perguntarem o que é um quadrado eu digo: é uma figura de quatro lados iguais e quatro ângulos iguais. Eu defini o quadrado. E Sócrates quando fazia essa pergunta aos sofistas ― O que é a beleza? ― eles não respondiam com a definição, eles davam exemplos. Uma égua, uma virgem, uma panela. Ao falar de primeiridade, segundidade e terceiridade, eu não vou definir, eu vou dar exemplos.

O Peirce,  e esse processo chamado semiótica em que nós acabamos de entrar, vai-se estender até a décima  aula, ele não vai mais nos abandonar até o fim do curso. Nós vamos fazer uma aproximação dele, vamos tentar compreendê-lo ligando-o à obra de Deleuze sobre cinema e até mesmo à obra do Bergson. Quando eu falei nesse filósofo do século XVIII-XIX (1766-1824) chamado Maine de Biran, quando eu falei no realismo em termos literários e quando eu falei em imagem-ação, o que eu usei? Pares de conceitos: esforço e resistência, ação e situação, personagem e mundo. O exemplo de segundidade do Peirce é aquilo que aparece em pares ― alguma coisa que aparece, mas sempre que aparece, aparece  em pares.

― Como é que nós vamos fazer para começar a mergulhar nesse mundo? Algo que só aparece trazendo com ele pares, que nos levam, quando nós vamos pensar essa questão, a sermos forçados a produzir dois conceitos: esforço e resistência, personagem e situação, ação e paixão. Ou seja, o que o Peirce está chamando de segundidade é um mundo onde as aparições são duplas. Por isso, (atenção!) os grandes exemplos do mundo da segundidade são o duelo e o dueto. Mas, de  uma maneira mais eficaz: quando nós estamos nesse plano da segundidade, você não tem um elemento isolado; todo elemento que aparece pressupõe um outro que se compõe  com ele. A segundidade é um mundo polifônico, do ponto e do contraponto. De: onde está A, estará B;  se tem C, tem D.

Por exemplo, durante muitos anos os etólogos (etologia é teoria do comportamento animal) encontraram, entre outros, um morcego que dava um grito que não havia ouvido para escutá-lo, até que eles encontraram uma borboleta azul que escutava o grito daquele morcego e ― constituiu-se o par.

No mundo da segundidade tudo são dois: ação e paixão, personagem e situação, homem e meio. O exemplo, dizem, o grande exemplo da segundidade é quando o John Wayne se confronta com o Lee Marvin ou quando o Henry Fonda se confronta com o Anthony Quinn. Ou seja, quando há um duelo. O duelo ou o dueto é a marca do mundo real.

Atentem para o que eu vou dizer que é o enunciado principal.

Nesse mundo da segundidade, ou nesse mundo real enquanto tal, nenhum ser é ele próprio, é sempre em relação: você jamais tem um ser esgotado em si mesmo. Nesse mundo da segundidade é necessário que haja uma relação entre as coisas que ali existem.

(Alguns vão me entender melhor, outros um pouco pior…)

Alguns cineastas tentaram construir um cinema em que aquilo que aparecesse não implicasse a presença de outro. Eles tentaram construir um cinema que não fosse governado pelo modelo realista, onde há a necessidade de dois. Tentaram fazer um cinema, ao invés de uma coisa em relação, fazer o cinema de uma coisa em si. E a coisa em si chama-se primeiridade. Esse cinema da coisa em si (ele se prolonga em outra questão, que eu não vou levantar para não trazer  problema agora.) é o que há de mais fantástico na experimentação atual do cinema. É onde estão aí os Garrett, o Jordans, o Brakhage, os grandes experimentadores do cinema.

― O que é isso que estou dizendo pra vocês? No mundo, o que se chama realismo nos apresenta a realidade constituída necessariamente por dois elementos. O grande e magnífico exemplo é dado pelo Maine de Biran quando ele utiliza os conceitos de esforço e resistência. Sempre que no realismo uma personagem faz um esforço ela se defronta com uma resistência. E essa composição esforço-resistência constrói o que está sendo chamado de segundidade. Todo cinema realista é colocado aqui dentro.

Então  você vai encontrar… (acho que no curso passado eu dei muito mais rápido do que isso, não é?) os grandes gêneros do cinema americano estariam aqui dentro – histórico, psicossocial, etc. ― estariam dentro dessa segundidade.

E a primeridade é um momento teórico que é como se fosse o próprio cinema. Nós não apreendemos o que é a primeiridade se nós não sofisticarmos o nosso pensamento, porque a nossa constituição é toda preparada para a apreensão da segundidade. Nós somos preparados para entrar em contato com o mundo que está na nossa frente. Eu vou chamar esse mundo de mundo atual. E esse mundo atual é constituído sempre pelos pares: homem-meio, personagem-situação, o duelo, o dueto, as polifonias… É sempre dessa maneira.

E eu vou aplicar agora um exemplo. Eu vou diminuir e ao mesmo tempo aumentar a qualidade do exemplo. A filosofia tem uma categoria que se chama qualidade. A qualidade é um elemento que para existir implica a presença de uma coisa, por exemplo ― o gosto do vinho branco: o gosto é uma qualidade; o vermelho da camisa: o vermelho é uma qualidade; o apito do trem: o apito é uma qualidade.  Então, aqui, nessas três expressões ― o apito do trem, o gosto do vinho branco e o vermelho da camisa ― o gosto, o vermelho e o apito são três qualidades; o trem, a camisa e o vinho branco são três coisas. A primeiridade é o apito sem o trem, o vermelho sem a camisa e o gosto sem o vinho. Então, neste mundo, você jamais terá o apito sem trem (o apito do trem ou o silvo do trem). Você jamais terá o gosto sem o vinho e o vermelho sem a camisa. Por isso, esses três elementos não são chamados de atuais, são chamados de possíveis.

― Por que possíveis? Porque são qualidades que você tem plena certeza de que, associadas a alguma coisa, elas aparecem. Elas aparecem desde que se associem a alguma coisa. O que faz com que a gente compreenda que essas qualidades ― separadas das coisas ― têm uma existência independente de qualquer relação. Elas são, sem a necessidade de relação. Chamam-se singularidades ― não enquanto realizadas, não enquanto atualizadas, mas antes da atualização: o vermelho é em si, o silvo é em si, o gosto é em si. As qualidades são elas, nelas mesmas, independente de qualquer coisa. A noção de primeiridade, que o Peirce está levantando, é uma noção que nós não encontramos no mundo histórico, nem no  mundo realista. Porque no mundo histórico e no mundo realista você vive em torno dos pares. Tudo forma par. Romeu e Julieta é um grande exemplo do mundo realista.

Agora, quando o Peirce se refere ao que ele chama de primeiridade você tem as qualidades independentemente das coisas em que elas  se efetuam. Vou dizer o enunciado preciso: são as qualidades não-efetuadas. As qualidades não efetuadas chamam-se  primeiridade. As qualidades não efetuadas. E é aqui que aparece a beleza!

Muitos cineastas tentaram fazer esse tipo de cinema, mostrar as qualidades sem que elas se efetuassem: o vermelho em si, o gosto em si, o apito em si.  Ou como um autor holandês chamado Joris Ivens. (Nós já passamos esse filme). Ele dedica a vida dele a fazer cinema da primeiridade. É o cinema da coisa em si mesma, ou seja, de uma coisa que não está no campo da relação. Essa coisa que não está no campo da relação chama-se primeiridade.

― O que é a primeiridade? A primeiridade são as qualidades não efetuadas. Todas as qualidades se efetuam numa coisa qualquer. O vermelho sem a camisa… O vermelho sem a camisa, na linguagem do pensamento, chama-se um possível.  Então  esse campo da primeiridade  permite que o pensamento se encontre com um objeto, sem que esse objeto esteja relacionado a outro:  se encontre com o objeto em si mesmo.

Então, se você vai fazer um cinema da segundidade você faz o cinema da relação. Se você vai fazer o cinema da primeiridade você vai fazer o cinema da qualidade em si. Da coisa como ela é, independente das outras coisas. Você vai fazer o cinema do em si. É uma das experimentações mais poderosas que o cinema faz, uma tentativa de dizer como algo é, independente das relações que esse algo faz.

Aluna: O em si seria a essência?

Claudio: Se você usar uma linguagem espinosista, por exemplo… Espinosa é um filósofo do século XVII. Ele vai dizer que esse em si é uma essência ― e dizer que a essência é um complexo de afetos; ou seja: a qualidade é um conjunto de afetos. Então, a essência ou o em si de alguma coisa são os afetos dessa coisa: afetos do vermelho, afetos do gosto, afetos do apito.

Aluna²: Claudio, para nos encaminhar com atenção, você fez uma decomposição. Você partiu da coisa em relação e decompôs essa coisa em relação para que a gente pudesse se aproximar da compreensão do em si da coisa. Essa modalidade de atuação existe na composição do cinema?

Claudio: A primeiridade?

Aluna²: Não. Isso que você fez: essa decomposição.

Claudio: Esse processo? Não. Esse processo que eu fiz é um processo para levar ao entendimento. Porque quando você se depara com o trabalho do Peirce, com a semiótica do Peirce, inicialmente sente uma estranheza ― por vocês nunca terem ouvido… Mas essa estranheza depois vai desaparecer, porque vocês vão ouvir falar seguidamente na semiótica dele… Quando você vai estudar o Peirce, ou melhor, quando o Peirce dava aulas, ele chegou a um ponto em que a universidade o botou para fora ― porque ninguém entendia o que ele falava; não havia possibilidade de entender o Peirce. Então, esse enorme trabalho que ele publicou, que ainda nem está todo publicado, quando esse trabalho chegou às mãos dos grandes investigadores ― o que vai marcar a presença de um grande investigador é sua habilidade em tornar compreensível aquilo que é praticamente impossível de ser entendido, ele tornar aquilo compreendido. Então esse é o processo que estou usando. Eu estou utilizando o que você chamou de decomposição, ótimo, decomposição está bom… Eu decomponho uma proposição para tentar levar vocês ao entendimento. Mas esse é o primeiro processo.  Esse processo vai aumentar, esse processo vai crescer, até que a gente atinja exatamente aquilo que eu quero. Mas nesse momento o que estou fazendo é uma decomposição. O apito do trem, o vermelho da camisa, o gosto do vinho branco. Eu fico só com as qualidades.

O importante aqui neste momento é fazer a distinção entre qualidade e objeto. O vermelho da camisa: vermelho = qualidade; camisa = objeto. O apito do trem: apito = qualidade; trem = objeto. Porque nós vamos passar por um processo surpreendente. É inimaginável o que vai acontecer aqui, nesse encaminhamento da semiótica do Peirce. Então, essa ideia que eu dei agora é a distinção entre qualidade objeto. Se você separa a qualidade (vamos ver se essa expressão dá  certo), se você separa a qualidade do objeto, você não remete as qualidades para a nadificação. Você não nadifica as qualidades; você as torna possíveis. Vejam bem, as duas expressões que eu usei: nadificar e tornar possível.

Nadificar é que, se eu separasse as qualidades dos objetos, o ato de separação fizesse uma anulação das qualidades. Neste caso, as qualidades não são anuladas, elas se tornam possíveis. As qualidades separadas dos objetos tornam-se possíveis; e quando elas estão nos objetos, tornam-se atuais.

Há duas maneiras de aparição das qualidades: quando elas estão nos objetos chamam-se qualidades atualizadas. Por exemplo, quando elas estão no objeto: perfume de mulher ― o perfume é uma qualidade se atualizando numa mulher. Qualidade atualizada, portanto, faz parte da segundidade. Qualidade não  atualizada chama-se qualidade em si. Aí você tem a primeiridade.

A distinção  ainda é cruel!…

Esse exemplo que eu dei de separação da qualidade e do objeto, eu disse que você separa qualidade e objeto, mas a qualidade não mergulha na nadificação. Ela não se torna um nada. Ela  se torna um possível. Mas ao mesmo tempo essa qualidade tem que perder todos os atributos que um objeto tem. Então,  aqui, vejam bem, se eu separo  a qualidade do objeto a qualidade perde os atributos que o objeto tem. Por  exemplo, todo objeto  implica num bloco de espaço-tempo. Todo objeto está num espaço e num ponto do tempo. Você encontra um objeto, ele está em Massachussets, Macaé, Leblon, Santiago do Chile, Valparaíso, Grécia, Olaria, UERJ, UFF, TV Globo… O objeto está num lugar, está num lugar qualquer, e esse lugar chama-se espaço. E além de estar num lugar, ele está no presente do tempo. Todo objeto é ― o nome é maravilhoso! ― todo objeto é atual; e ser atual é estar num bloco de espaço-tempo: é estar aqui e agora. Isso é a composição dos objetos que são, todos eles, sempre, permanentemente atuais. Na hora em que você separa a qualidade do objeto, você desatualiza a qualidade. Desatualizando a qualidade, você retira a qualidade do bloco de espaço-tempo. Ela sai do bloco de espaço-tempo.  Ela não está mais no bloco de espaço-tempo ― ela é como que desativada, desatualizada. Um dos processos pelos quais o cinema faz isso é com o primeiro plano ― o primeiro plano procura extrair da tela o espaço e o tempo. Como se produzisse uma eternidade. Por isso o primeiro plano é uma amostra da primeiridade.

Aluna: Essa separação teria a ver com o intervalo?

Claudio: Tem a ver… tem a ver. Não está mal feita a pergunta. Está ótima a pergunta. Não tenho como dar uma continuidade à sua questão, mas tem a ver sim.

O importante aqui, a maneira de vocês entenderem os grandes diretores de cinema, que trabalham com essa primeiridade, é por esse processo que estou fazendo ― um processo semelhante ao processo do escultor: é desbastar, retirar… Retirar o que atualiza um objeto: tempo, espaço, função… Se você retirar tudo isso, quando você for pensar a qualidade, ela se torna inatual. Porque para que algo seja atual tem que estar no bloco de espaço-tempo. Ela se torna inatual e em linguagem de filosofia isso se chama possível.

Essa questão do possível vai-nos dar muito trabalho. Porque nas correntes da filosofia houve duas linhas que trabalharam e trabalham com o campo dos possíveis: os lógicos e os metafísicos. E a minha questão é a com os metafísicos. Então, possível é alguma coisa real, mas não-atual. A realidade se abre em duas linhas. O vermelho é real, mas não é atual. Para se atualizar ele precisa de um objeto num bloco espaço-tempo.

Então, eu  vou passar a usar isso aqui. As qualidades se atualizam ou não se atualizam. As qualidades se atualizam no objeto, no bloco de espaço-tempo; ou elas  não se atualizam. Quando não se atualizam elas se expressam. Então, nós agora vamos  ter que começar a lutar por essa linha que é a grande linha do pensamento ― a linha da expressão.

As qualidades expressas… Por exemplo, Os Girassóis do Van Gogh ― não têm qualidades atualizadas, mas têm qualidades expressas. Quando essas qualidades se expressam e quando elas se atualizam. Quando elas se atualizam (eu vou usar esse nome e depois vou variar), quando elas se atualizam no homem chamam-se sentimentos. As qualidades atualizadas no homem chamam-se sentimentos. Quando elas se expressam, chamam-se afetos. Qualidades expressadas, qualidades atualizadas.

(Eu acho que está sendo um sucesso total. Não é? Há uma dificuldade imensa de se entender isso!).

Os dois conceitos que eu vou sustentar são o conceito de atual e o conceito de possível. As qualidades isoladas não são atuais, mas elas são possíveis porque não se nadificam. Então, essa ideia de não-nadificação  é uma ideia básica. Vamos dizer, para vocês entenderem ― Deus e o Mundo. Numa mentalidade ateia, você separa Deus do Mundo ― imediatamente Deus se nadifica. (Certo?) Ele se nadifica: ele não é nada. Enquanto que o que eu estou mostrando para vocês é que as qualidades se encarnam nas coisas, mas fora da encarnação ou fora da atualização  elas têm um tipo de phaneroscopia. Elas têm um tipo de ser. Esse ser chama-se possibilidade. Elas não desaparecem, elas têm uma realidade, mas não é uma realidade atual. Um perfume… Como que um perfume poderia aparecer no mundo? Encarnado num objeto qualquer: perfume numa flor, perfume no corpo de uma mulher… Agora, o perfume enquanto primeiridade é ele em si mesmo ― independente do corpo que o carrega.

O cinema realista lida com essas qualidades, ― mas as qualidades encarnadas, as qualidades atualizadas. Eu vou abandonar um pouco as qualidades atualizadas, porque senão elas vão me digerir, elas vão me engolir…

Eu vou deixar  as qualidades atualizadas e vou pensar as qualidades não atualizadas, que se chamam qualidades em potência. Essas qualidades em potência o Peirce chama de primeiridade: são as qualidades em si.

Vamos fazer um filme? Vamos fazer um filme sobre a chuva. Se eu fizer um filme sobre a chuva na cidade, fizer um filme como, por exemplo, o Ridley Scott fez, um filme daquele temporal em cima de Los Angeles.

Aquela chuva do Ridley Scott é uma chuva de segundidade. É uma chuva numa coisa, num objeto. Se eu quiser pensar a chuva em si mesma, fazer um filme sobre a chuva em si mesma, eu vou abandonar todas as relações da chuva, eu vou tentar pensar a chuva como ela é nela mesma.  Ou seja, o cinema fazendo uma experimentação no que se chama primeiridade, ou o que se chama na imagem em si mesma ― que é assim a grande experimentação do pensamento. Mergulhar na coisa ou mergulhar na qualidade e nos dar a coisa ou a qualidade como ela é.

Eu vou dar um exemplo, não sei se vai ser bom. Eu  vou dizer assim: Deus… (um pensamento cristão, hein?) porque não importa se o pensamento venha misturado com a religião ou não, quando está a serviço da estética… Ele não está a serviço da religião, está a serviço da estética! Quando Deus se manifesta numa catedral gótica ele se manifesta pelos raios do sol que batem naquelas rosáceas,  que existem nas catedrais  góticas. Essa manifestação de Deus pela luz solar nas rosáceas é uma segundidade: Deus + as catedrais. Mas se você olhar essa luz de dentro da catedral, ela já atravessou as rosáceas, que são vitrais; e aí a luz já não é mais a luz do sol, a luz que atravessou as rosáceas é a luz de Deus é uma primeiridade. É como se as qualidades divinas tivessem se libertado do Cosmos que as comprimiam. Na verdade é exatamente isso: a primeiridade é você liberar a qualidade dos objetos nos quais ela está atualizada. Então, qualquer tipo de qualidade pode ser pensada e apresentada pelo cinema.

(Foi bem essa explicação? Vocês acharam que correu bem?).

Aluna: Eu não entendi o exemplo. Você, de qualquer maneira, está relacionando o interior com [trecho inaudível]

Claudio: Você não entendeu? É o seguinte, eu quis dizer o seguinte: que Deus se manifestaria pela luz, mas a luz do sol quando toca na igreja, quando a luz do sol bate na igreja, ainda é um processo de segundidade: a luz do sol + a igreja. Mas quando a luz atravessa a rosácea, que é o vitral, ali já desaparece a segundidade e a essência de Deus aparece naquelas cores que o vitral produz. Foi isso que eu quis dizer. É como se Deus conseguisse, através de uma espécie de peneira (peneira é um nome de um utensílio utilizado na cozinha), ou de uma cribacio ― que é um nome teórico do século XVII ― surgir para nós, os videntes. Quer dizer, uma homenagem que as catedrais góticas fazem aos homens deste século. Todas as tardes, às seis horas, Deus está presente nas catedrais góticas ― como primeiridade. O Deus da segundidade é outra coisa, porque é religioso. O da primeiridade é estético. Então, essas noções de primeiridade e de segundidade pertencem à semiótica do Peirce.

Ainda falta a terceiridade, (não é?). A primeiridade é a desativação (eis o momento principal, acredito agora), a desativação, a desatualização da qualidade. Você  desatualiza a qualidade, você tira a qualidade do mundo atual, ela sai do mundo atual. Não é o vermelho da camisa, não é o azul da cadeira,  mas é o vermelho nele mesmo, o azul nele mesmo. É a qualidade em si, é o ser em si, o ser da coisa ― e não a coisa em relação. Esses dois procedimentos se exemplificam num processo que eu vou dar o mais rápido possível:

Quando a vida apareceu no universo trouxe com ela um componente para resolver os problemas com que por acaso ela se defrontasse. E essa força que a vida trouxe chama-se instinto. O instinto seria a força que todos os animais teriam para dar conta das coisas que estão diante deles. Por exemplo, por instinto o animal separa o veneno do alimento.

[fim de fita]


Parte III

[trecho inaudível]

[A inteligência] …avalia a relação entre as coisas. Ou seja, a inteligência é um instrumento poderosíssimo que o homem tem para confrontar, comparar, opor e avaliar as coisas em relação. Além dessas duas forças ― o instinto e a inteligência ―  apareceria uma terceira chamada intuição. E à semelhança do instinto e à semelhança da inteligência ― a intuição também entraria nas coisas. Mas quando a inteligência entra nas coisas ― entra na relação entre as coisas. E a intuição ― penetra na coisa mesma, para conhecê-la no seu ser, no seu íntimo. Então, o processo da intuição é o processo da primeiridade.

Isso daqui que eu acabei de falar pra vocês, esse texto que eu utilizei agora no final, vocês encontrarão numa coleção que eu não gosto muito, mas que quebra um galho, chamada Os Pensadores ― com o título Bergson, no capítulo chamado Introdução à Metafísica, onde Bergson faz uma distinção entre a inteligência e a intuição. A intuição é um poder que nós temos de conhecer as coisas nelas mesmas; enquanto que a nossa inteligência só conhece as coisas em relação. (Certo?). Por isso, a filosofia ― serva da inteligência ou da razão, dá no mesmo ― tornou-se uma epistemologia.

― O que é uma epistemologia? A epistemologia é uma reflexão sobre o modo como uma determinada ciência opera. Então, a epistemologia, por exemplo, epistemologia da biologia. A biologia opera no seu objeto, através do intelecto, através da inteligência, opera em cima daquele objeto dela através da razão; e a filosofia vem e faz uma reflexão para dizer da qualidade daquela operação que a ciência biológica fez… ou, se não é a ciência biológica, são as ciências sociais… Por exemplo, o grande epistemólogo  das ciências sociais  é o Karl Popper. Você procura o grande epistemólogo   da ciência biológica e, assim por diante. Então a epistemologia, ou a  filosofia enquanto associada ao intelecto, é  serva do intelecto. O Nietzsche chama “operária”, a filosofia como operária, servindo à ciência. O  que o Bergson faz é libertar a filosofia dessa função epistemológica; e tornar a filosofia uma ontologia. Ou seja, ao invés de a filosofia refletir as práticas das ciências que são as relações entre os objetos ― a filosofia mergulha nos objetos em si mesmos e se torna uma ontologia. Essa ontologia é a primeiridade.

(Acho que foi claro, não?)

São os momentos em que, ao modo de Proust, nós afastamos a morte e o medo da morte… por esquecimento… porque nós mergulhamos na beleza. Sempre que a gente mergulha na beleza nós afastamos os componentes da angústia. Por isso que Proust pode dizer, na obra dele, que nós não nos salvamos pela religião, só nós nos salvamos pela arte. Pela arte, inclusive, é possível provar ― pasmem! ― a imortalidade da alma. Jamais pela religião.

(Então, acho que foi bem essa aula, não é? Porque foi como se fosse um filme, de tão bonita que é a junção desses pensadores magníficos. E nós fizemos uma entrada na primeiridade e na segundidade… E eu vou ser sincero para vocês. O que me valeu nessa aula foi o mais difícil: que a primeiridade é a qualidade separada do objeto ― e eu utilizei o nome desatualizada ou desativada. Porque… quando nós passarmos para o tempo, o que vai me importar é o tempo desatualizado, o tempo desativado. Na próxima aula eu já vou entrar nisso).

O Robbe-Grillet… Se a gente pudesse trazer os grandes filmes… Mas a gente não pode trazer, a gente não tem… a gente não encontra…  Mas isso daqui já vai gerar uma pequenina pressão para que aqui no Brasil passe a ter esses filmes (não é?). Então a gente vê grandes filmes. Antonioni, maravilhoso. Mas eu não posso passar determinados filmes porque não há como passar. E a gente tem que resolver com esses que a gente tem. Não tem outra saída.

(Bom, obrigado, hein!?)