Aula de 09/02/1995 – O personagem artístico

Eu acabei de dar um curso de dez aulas – terminou na segunda-feira passada. Eu encerrei o curso lendo um texto – e o texto é uma espécie de conclusão do curso que eu dei. Eu vou retomar o texto, agora, como início deste curso – e eu acredito que vocês vão compreender perfeitamente o que vai ocorrer na fala dela: eu não quero que ela modifique os verbos. Então, os verbos vão ser sempre referentes ao que já passou.
Aluna: Ninguém sabe por que você está falando ” ela”!
Claudio: Ela? É porque é a S. quem vai ler esse texto.
Als.: Risos…
Cl.: E, aqui, realmente o texto não se refere ao que já passou. Ele, aqui, vai se referir ao que vai acontecer. Então, todo mundo nesta aula vai tomar um contato direto… E se vocês quiserem uma cópia não sei se ela dará…
Al.: Não. (Risos) Eu não dou cópia e ainda peço que os gravadores sejam desligados. Só depois eu vou iniciar a leitura, está bem?
(Risos)
Cl.: Vou passar o texto com vocês. Na quinta-feira passada, nós já começamos [a mexer nessa questão], mas [ainda] com certa imprecisão.

Eu vou pegar um texto do Stanilawsky e um texto do Cassavetes. Todo mundo conhece os dois, (não é?) E esses dois textos vão ter o objetivo de gerar a figura que vai comandar as nossas aulas. No texto do Stanilawsky ele diz assim: “A ação, o movimento é a base da arte que o ator persegue. A ação ou movimento… é a base da arte que o ator persegue. A ação ou movimento é a base da arte que o ator persegue.

Diz o Stanilawsky: O ator, para exercer sua função de ator, tem que ter dentro dele , ou anteriormente à pratica de ator [que ele irá exercer] – um TEMA. Por exemplo: ele pega uma aluna dele, que se chama Maria, e diz:
– Eis o seu tema: sua mãe perdeu o emprego e a renda, não tem nada para vender a fim de pagar o seu curso na escola dramática; portanto, etc… Ou seja, para representar, essa atriz pressupõe a constituição de uma história – e a partir dessa história ela faz a sua prática representativa. O ator é desencadeado por uma história. Ai, praticamente, estaria a base da arte do Stanilawsky.

Diz o Cassavetes: “Eu não creio… eu não tenho nada escolhido nem retido, os acontecimentos se produzem; e esses acontecimentos seriam mais naturais, porque são reais. Eles não emanam de mim, que sou diretor; nem emanam da câmera nem emanam de uma história, eles emanam das pessoas que os criam. Emanam dos personagens, os personagens dão vida, eles criam o espetáculo e produzem a obra.”

A verdadeira diferença entre Shadows (que é um filme dele) e os outros filmes, é que Shadows, diz ele, ” emana dos personagens”. Então, ele está dizendo que esse filme, esse trabalho dele, emana do personagem; enquanto nós vimos que no Stanilawsky o personagem emana da história. Então, a diferença é nítida! Para o Cassavetes, toda obra, que não é nem propriamente a história, pressupõe o personagem que a produz. Se eu tomasse essa posição do Cassavetes e comparasse com o Nietzsche, eu ouviria o Nietzsche dizer que – à diferença do Platão, que diz que o corpo é aquilo que impede o pensamento de pensar é o corpo aquilo que força o pensamento a pensar. E quando o pensamento é forçado pelo corpo a pensar, a única coisa que o pensamento pensa é o corpo. Ou seja, a função do pensamento é dar conta do corpo.

Essa leitura do texto, e essa exposição do Cassavetes e do Stanilawsky é pra mostrar pra vocês que nós vamos começar este curso pesquisando , trabalhando e procurando PERSONAGENS. Ou seja: eu não vou falar nada mais do que essa figura, que eu vou criar aqui, chamada personagem . Por exemplo, o personagem rítmico do Messiaen; o personagem heteronímico do Fernando Pessoa; o personagem conceitual da filosofia; o personagem estético da literatura; e assim por diante.

Esta aula, para que ela se desenvolva, para que ela se desenrole – e essa palavra desenrolar-se é inteiramente filosófica – seu ponto de partida é essa idéia – personagem . Acho que fui bastante claro: nós estamos trabalhando com a noção de personagem, pouco importa de onde venha essa personagem. E o modelo da noção de personagem é o modelo do Nietzsche – que o Nietzsche diz assim: “o corpo não bloqueia o pensamento; o corpo força o pensamento a pensar.” E o que o pensamento pensa, seria exatamente o corpo .
É esse o fundamento da aula!

A partir disso – e eu acredito que fui claro nessa exposição – eu acho que todo mundo compreendeu o que eu disse; e nós vamos entrar nessa idéia de personagem… Para o entendimento inicial de vocês o personagem… é o heterônimo do Fernando Pessoa, o ritmo do Messiaen, ou seja, o que eu vou descaracterizar no que estou chamando de personagem – é o sujeito pessoal . O que eu vou descaracterizar nele é exatamente a personalidade .

Então, eu vou tomar como ponto de partida desta aula uma expressão que não é do Proust – mas que eu vou dizer que é do Proust! Eu vou criar a expressão PERSONAGEM ARTÍSTICO . E esse vai ser o ponto de partida da aula. Nós vamos criar uma figura chamada personagem artístico – um personagem que tem como objetivo único de sua existência produzir ARTE, mais nada! Ou seja: esse personagem não tem uma história pessoal, não tem uma vida pessoal; pelo contrário – esse personagem artístico tem um confronto a fazer em sua existência: ele é permanentemente invadido pelo sujeito pessoal, com quem ele tem que se confrontar ele tem que afastar esse sujeito pessoal para liberar todas as suas forças . Então, a linha de aula que estou traçando pra vocês é que a arte só é possível se esse personagem artístico nos confrontos que ele fizer obtiver uma vitória sobre o sujeito pessoal. (Certo?)

Evidentemente, isso é um momento muito difícil, porque muita gente pensa: “Ah! Então para se produzir um personagem artístico eu tenho que desfazer a minha história pessoal para sempre?” Não. Eu não estou dizendo isso. Não obstante, se isso for feito, ótimo! Mas não é isso que estou dizendo. O que estou dizendo aqui é que o personagem artístico, num modelo proustiano de entendimento do que é estética, do que é arte, só pode se constituir se conseguir afastar de si a personalidade com sua história pessoal, com sua biografia, com suas questões sentimentais, etc. Essa posição [que eu estou assumindo] se põe completamente em oposição à posição do Stanilawsky.

Esse personagem artístico é – simultaneamente – um personagem filosófico e um personagem estético… O que ele vai exercer na existência dele – que pode ser uma existência de um segundo – a existência não tem que ter uma longevidade , pelo contrário: se cada um de vocês, que faz arte, analisar e avaliar os pouquíssimos momentos em que vocês foram artistas; e os muitos momentos em que vocês foram personalidades – vocês vão verificar que o tipo de existência que o personagem artístico exerce é totalmente diferente da existência da personalidade. Ele pode aparecer em nós nos raros momentos do cotidiano, pode aparecer em nós quando nós estamos fabricando a nossa arte ou pode desaparecer pra sempre: sucumbido na sentimentalidade e nas emoções do comportamento do sujeito pessoal.

Em última análise, o grande confronto que o pensamento do personagem artístico faz é com as práticas comportamentais do sujeito humano. Em última análise, é esse o herói desta aula que – basta olhar aqui – é uma aula em que praticamente todo mundo é de arte – ainda que as artes sejam as mais variadas, ainda que aqui exista um físico – esse físico , que estuda comigo há muitos anos, é um artista… Então, não é uma pregação; não é uma tentativa de persuasão – mas precisamente o que o texto disse, [porque] eu estou entrando exatamente no que dizia o texto. Nós não vamos partilhar da tradição representativa do Ocidente – que é dividir o mundo em sensível e inteligível. (Eu vou ter que ensinar isso a vocês.) Nós vamos sair dessa partilha clássica; e vamos penetrar no que – no texto – foi chamado de pré -individual. Ou seja, nós vamos mergulhar nesse oceano tempestuoso, pra fazer – ou não – alguma coisa de novo na arte. Se isso não acontecer… esse curso torna-se suicidário. Quer dizer, o alimento desse curso é – exatamente – o exercício da produção do personagem artístico.

(Acho que eu não preciso mais reproduzir isso, não é? O texto ficou claro, o texto evidenciou isso!)

O nosso trabalho, agora, é mergulhar – exatamente como aquele pássaro que eu disse que, com sua velocidade, risca de branco o fundo do azul… – e nós vamos mesmo mergulhar nas MATÉRIAS DA ARTE; porque SER ARTISTA é precisamente mergulhar nessas matérias e – ali – imprimir alguma coisa que nenhuma tecnologia será capaz de fazer.

A arte – como eu a compreendo – é inteiramente MATERIALISTA. Inteiramente materialista! Ela é uma prática , um poder que o artista tem de traçar na matéria, na qual ele trabalha, alguma coisa de tão especial que nenhuma prática tecnológica é capaz de dar conta. A arte é uma relação do sujeito artista com a matéria – com a matéria sonora , com a pedra , com a palavra – por exemplo. Não importa qual seja a matéria – a questão do artista é envolver-se com ela: envolver-se com a matéria. (Vocês entenderam?) E nesse envolvimento que ele vai fazer com a matéria, ao tornar-se um personagem artístico, ele tem que destruir nele pelo menos naqueles instantes – todos os poderes (geralmente sentimentais e sofridos) que o sujeito humano coloca dentro de si.

Nós estamos produzindo uma idéia de arte que eu tenho. Uma idéia de arte que ao invés de reproduções comportamentais – é a geração dos afetos, a produção dos gestos, mas sobretudo é o corpo como EXPRESSÃO deTEMPO. Ou seja, se há alguma coisa que pode produzir o tempo – essa coisa chama-se CORPO. E a função do artista é dar conta disso.

(Vocês podem falar. Vocês têm três minutos pra perguntar, concordar ou discordar.)

Alº.: Só uma dúvida… Onde mora… a gente viu numas aulas atrás… num quadro, por exemplo: que existe a parte estética do quadro, mas existe também aquela essência, aquela… não sei como se chama isso… que é exatamente a parte eterna desse quadro: que é a alma, como se fosse a alma desse quadro. Agora, onde é que mora essa alma se não existe essa história… —-

Cl.: O Cassavetes faz uma narrativa interessante. Ele diz que quando ele conseguiu fazer (o filme) Shadows (Sombras), que ele ficou apaixonado pela câmera. Geralmente o cineasta é apaixonado pela câmera! Ele coloca a câmara na mão e sai filmando , cheio de paixão por ela. O Cassavetes diz ter ficado tão apaixonado pela câmera dele, que procurava filmar com árvores em primeiro plano, procurava focalizar janelas, pegar os personagens à distância… até verificar que a obra de arte – pelo menos no cinema – é a aparição do personagem Então, o que ele vai fazer? Ele vai colocar a câmara – que no início era o principal componente do filme – como uma serviçal do personagem . A obra de arte é exatamente isso: a obra de arte vai implicar a quebra da nossa percepção utilitária, pra poder ver exatamente isso que você chamou de uma alma que vai habitar uma tela. (Não sei se fui claro!) Ou seja, para nós produzirmos uma obra de arte e essa obra de arte fazer, necessariamente, uma composição com o espectador – e ela vai fazer essa composição com o espectador – o que tem que ser quebrado, não é no artista ; mas cabe ao artista produzir os meios para que também o espectador quebre [sua percepção utilitária] e possa entrar em contato com essa alma que vai ser marcada dentro de uma matéria. (Não sei se você se deu conta de que essa resposta é possível…)

Alº.: Mais ou menos: é difícil!

Cl.: Por que é difícil?  Porque o sujeito humano, que é aquele que tem o domínio sobre nós, é governado , é centrado na sua percepção; e a percepção dele (todo mundo nesta aula aqui já sabe!) é sempre utilitária: está sempre respondendo aos interesses orgânicos!

Então, a constituição do sujeito artístico é a quebra dessa percepção orgânica. Ele vai quebrar [esse domínio]; e ao quebrá-lo, a viagem dele se transforma, como se diz, numa viagem … de droga ou algo semelhante : ele sofre um deslocamento das estruturas perceptivas. Ele, o sujeito artista, penetra em um mundo que não é mais o mundo da representação, já não é mais o mundo apreensível pela percepção utilitária ou pelo intelecto significativo. Ele entra num universo inteiramente novo – e é isso que eu vou ensinar pra vocês!…

– O que é essa personagem? O que é construir uma figura estética ou uma figura conceitual capaz de quebrar essas muralhas que constituem a nossa vida pessoal, que constituem o modelo orgânico? um modelo orgânico – nós somos um mundo orgânico. E toda a arte realista é uma manifestação desse modelo orgânico. Nós vamos tentar afastar esse modelo orgânico, para penetrar no que vai ser principal nas nossas aulas – o que estou chamando de personagem artístico . Evidentemente que isso não é uma tarefa fácil: não é uma tarefa fácil no plano teórico , mas não é uma tarefa fácil também no plano existencial . Porque, cada um por si – concedendo e admitindo que aquilo que está fazendo é inteiramente novo e ponto final. Ou seja, é um exercício que cada um de nós vai fazer – um exercício de artista . Cada um de nós vai fazer uma prática de sujeito artista, para tornar-se autônomo na sua própria obra – cheio de orgulho daquilo que está fazendo – e se confrontar com as forças psicológicas e orgânicas do sujeito humano.

Na verdade, o que Proust, por exemplo, chama de sujeito artista não é – de modo nenhum – o autor de uma obra. Sujeito artista é aquele que é capazde produzir uma força tão grande em si mesmo, que se libera dos modelos orgânicos, funcionais, pessoais e dos interesses de uma linha superficial. É como se eu os convidasse para participarem desse texto que eu escrevi; como se eu os convidasse a penetrar num mundo acentrado, sem dimensões e, como aquele apaixonado desmemoriado que, atrás da sua amada, se dirige para não sabe onde , para lugar nenhum .  E isso é – queiram os sujeitos orgânicos ou não – isto é o próprio —-. A vida é exatamente esta abertura que não para de se fazer, mas que não caminha para lugar nenhum. Então, o artista seria exatamente um membro desse universo e a vida nesse não -projeto, mas nesse processo dela de não se dirigir pra lugar nenhum… o que ela faz para ela própria se tornar possível é a produção da arte. A arte é o meio que a vida tem de conseguir passar. Isto que estou dizendo pra vocês é evidente que quando vocês forem pra a rua e forem entrar em contato com os outros, poucas pessoas vão entender o que estou dizendo. Então, essa aula daqui, o que ela exige de cada um de vocês, é que cada um de vocês se exceda – cada vez mais – numa produção de sofisticação. Que não confundam sofisticação com afeto – ser afetado por alguma coisa; mas que cada um de vocês procure se sofisticar ao ponto máximo da sua arte. E deixar de sacrificar a arte em favor dessa   ——– em favor do sujeito orgânico. (É muito fácil o que eu vou dizer…) Vocês são todos… É a turma mais complexa que eu tenho, porque cada um de vocês aqui é uma força nascente, uma força vibrante, cheia de… [—] não quer dizer que é a idade… porque a C– tem dezessete anos, não é por isso! Porque cada um de vocês é uma potência aberta para um desconhecido quase que insuportável – e esse ‘desconhecido quase que insuportável’ é exatamente a produção da arte de vocês.

É muito fácil entender o que eu disse: cada um de vocês está diante de uma matéria – e essa matéria é onde vocês vão inscrever a arte de vocês. Isso implica, necessariamente, num esforço permanente . Sob pena dos prazeres do ‘bife com batata frita’, etc., vencerem todas essas lutas.

Eu não paro de dar aula de Ética pra vocês, não paro… Parece que é uma… repetição minha. Em outras linhas eu vou re-explicar… (inclusive também por causa da chegada da C–, ela chegou atrasada). A arte – ela se torna o tema , ela se torna o motivo da vida de cada um de nós. Ela é o motivo , ela é o tema . E não é propriamente o objetivo ; ela é a atmosfera da vida de cada um de nós. Mas, por causa disso, o amor , o sexo e a amizade não vão desaparecer, mas essas três figuras, tão poderosas nas nossas vidas, – sexo, amor e amizade – , ao invés de serem motivo, tema ou atmosfera, tornam-se ornamentos . Eles vêm ornamentar a personagem artística —-, a personagem conceitual, o observador científico. Eles vêm como ornamentos! Não é que o artista se permita sair da sua atmosfera de arte para fazer sexo , praticar a amizade e exercer o amor – de maneira nenhuma! Sempre que eles vão fazer esses exercícios – esses exercícios vão ser ornamentos da sua arte. E aí, o amor, o sexo e amizade perdem as suas características clássicas de sentimento . Perdem essas características clássicas de sentimento – e se tornam conjugações poderosíssimas pra nossas vidas. Porque eles não são centros , eles não são temas – como são para o homem comum!

O homem comum – o homem médio – não tem outra saída: ou ele leva a vida dele exatamente por essas linhas – e ele coloca o amor, a amizade e o sexo como o centro da vida dele – ou ele vai viver envolvido com culpas insuportáveis.

Mas é diferente do que estou dizendo do sujeito artista. O artista, não; o artista tem que levar às ultimas conseqüências o seu único motivo – que é a sua arte. Eu vou dar a última expressão sobre isso, e aí entro na aula,       reproduzindo um texto do Jim Morrison em que ele diz que no final das contas a sua única amiga – é a música .

(Vocês têm que começar a se preparar – uma vez que vocês forem conviver comigo, nas minhas aulas – a aprender ; não, pra saber. A aprender que tudo o que tem que ser feito aqui é o desenvolvimento quase que interminável – às vezes, insuportável. Porque eu sou insuportável, desde que eu considere alguém meu aluno. Se eu o considerar meu aluno , eu me torno insuportável. Por quê? Porque eu vou forçar que o espírito seja a única linha possível pra ele. É isso.

Deu para você compreender alguma coisa ou não,C–?
Alª.: Eu estou chegando…
Cl.: Você está chegando, não é, menina?

Tudo isso que estou falando pra vocês… escorre … isso escorre… isso escapa… Porque uma solicitação da cidade – a nossa cidade constituída exatamente sobre o campo psicossocial; ela se garante no campo psicossocial. Então, toda a organização da cidade tem um modelo orgânico e um modelo humano. E esse modelo orgânico e esse o modelo humano – nos solicitam muito …  Solicitam, de que maneira? (Vocês, —–claramente.) Ele nos solicita nas festas , nos jantares , nos bares … Ele vai-nos chamando! Eu já disse, uma vez, um enunciado pra vocês, um enunciado do Proust…

(final de fita…)

LADO B

O que estou dizendo pra vocês é que a natureza lançou uma série de flechas. Lançou, por exemplo, uma flecha musical – P–, L–, Po-, e assim por diante… Agora – quem tem que administrar esses talentos , essas vocações , essas tendências … são vocês – é isso que se chama ÉTICA.

Ética é completamente diferente de moral : ÉTICA é saber administrar as grandes tendências da sua vida.

O Nietzsche diz que se essa grande tendência for a preguiça , levem-na às últimas conseqüências, mas a administrem. Não deixem que essas linhas poderosas fujam de suas vidas – porque a vida é inteiramente contingente. Inteiramente contingente! O artista… o gênio às vezes não pode efetuar a sua obra, porque um pequenino erro… uma pequenina veia se rompe no cérebro… e ele morre! Vocês têm que saber – o tempo inteiro – que vocês estão no interior da contingência . E estando no interior da contingência o que vocês têm que exaltar o tempo inteiro é a potência de intensidade que vocês têm nas suas vidas. Levem a intensidade às ultimas consequências – mas colocando como motivo da vida de vocês , a ARTE.

(O instrumento teórico mais poderoso que eu tenho ainda não é a aula. Por que ainda não é a aula? Porque está havendo faltas… O curso ainda não está organizado. Uma aula pressupõe um percurso muito poderoso! Eu não daria uma aula fácil – a aula geralmente vai se tornando muito difícil… Então, vocês têm – nós temos – um elemento muito forte que é o domingo: eu preciso de vocês domingo ! E esse domingo é basicamente cinema. Com o cinema eu tenhomeios muito fortes de dar exatamente o que eu preciso. Então, não é que vocês tenham: nunca o “tem” aqui. Nós vamos retomar os cinemas no domingo. Vamos retomar… Já foram passados dois filmes, (não é?) Foram passados dois Losey, não foi isso? O Criado e O Mensageiro. (Alguns ainda não viram. [Indica pessoas:] Você não viu… F– também não viu… Isso foi… no penúltimo domingo. Você também não viu O Mensageiro . Então, paraaqueles que não viram… a gente pode fazer um novo encontro para passar outra vez os filmes ) .

No próximo domingo eu ainda vou manter o Losey com Casa de Bonecas e provavelmente A Cigana e o Gentleman . Eu vou dar uma mantida no Losey porque eu já tenho que começar a forçar esse curso… E o componente mais poderoso pra mim eu ainda acho que seja o cinema, porque no filme eu posso parar e expor o que está acontecendo ali.

Eu quero explicar (e esta é a terceira vez que estou falando sobre isso nesse curso) o que é o domingo pra vocês. Domingo é o meio que eu tenho de o teórico se tornar visual . É isso. Eu conseguir mostrar pra vocês o que foram os grandes artistas do século XX. Então, nesse domingo para mim é muito importante que vocês estejam presentes. Está pronto, está explicado isso, ninguém pode admitir que antecipadamente já sabe do que se trata. Não, não sabe. Só vai entender na hora em que estiver observando…

Bem… esta aula vai ter como matéria-prima a noção de PERSONAGEM. Essa é a matéria desta aula: o personagem.

(O Deleuze dizia que nunca dava intervalo nas aulas dele porque geralmente o pessoal ficava no bar e não voltava. Risos…)

Isso é muito compreensível. É a força que cai sobre a subjetividade pessoal. Porque o sujeito pessoal tem uma vida muito difícil, muito esmagada. Qualquer um! A história pessoal é muito esmagada; ela é muito atormentada. Então, ela procura saídas… A linha dela são festas… é um bar… Ela arranja essas saídas, não é? O que eu estou querendo constituir pra nós são outros tipos de saída. (Não quer dizer que você não vai ao bar. Não é nada disso!) Mas são outras saídas. Outras linhas para a vida em que cada um fortaleça sua própria arte!

Então, o plano de aula é essa idéia de personagem. Eu vou dar início à idéia de personagem…, é muito difícil!… Eu vou trabalhar uma simplificação … Eu vou trabalhar com Fernando Pessoa, para começar – Eu estou escolhendo agora! – para simplificar isso e vocês poderem penetrar nessa questão: o que é exatamente um personagem artista . O que é isso?

Vou usar um pouco a C– e o F–. C– e F– são dois artistas que têm a existência pessoal deles. Ou seja, ele se chama F– e ela se chama C–. Mas quando eles estão fazendo a peça deles, ela se chama Alice e ele se chama Rodrigo.

Se eu perguntasse a eles dois… se eu agora me virasse pra eles e fizesse a seguinte questão: – C–, F–, quando vocês são C– e F–, as ações que vocês fazem são ações reais? E as ações que vocês fazem, quando vocês são Alice e Rodrigo, são ações imaginárias? – Como é que vocês me responderiam?

Alª: É real… Ou nada é real… ou tudo é real.

Cl.: Não, mas ao que parece… vamos dar uma pensada. Vamos pensar uma questão. C– tem filho?
Alª.: Não.
Cl.: Alice tem. O que eu estou dizendo é que a arte realista… (Prestem atenção! É de uma importância incrível o que estou dizendo pra vocês!). A arte realista se constitui pela produção de uma ação imaginária e de uma situação fictícia . Isso é arte realista! Ela produz uma ação imaginária numa situação fictícia .

– O que é uma ação imaginária ? Rodrigo e Alice. Numa situação fictícia. Qual é a situação fictícia? Pátria Minha. Vocês entenderam? No realismo, necessariamente, você vai fazer uma cisão entre o ator e o personagem. O ator F– e a atriz C– têm ação real numa situação real ; mas eles se tornam Rodrigo e Alice – que é uma ação imaginária numa situação fictícia . Pouco importa se isso é verdadeiro ou falso – é uma tolice discutir se isso é verdadeiro ou falso porque isso é indiscutível é esse o ponto de partida para nós entendermos a arte realista . Vamos partir assim. Nós vamos partir de que o ator realista se envolve com uma ação imaginária e com uma situação fictícia. (Vocês entenderam o que estou dizendo?)

Há um filme modelo pra isso que é o Four Friends. Como se chama em português?

Aluno: Amigos para sempre.

Cláudio: Amigos para sempre . Nós vamos ver esse filme. Domingo nós vamos ver esse filme! O filme é do Arthur Penn. Eu vou fazer vocês conhecerem esse diretor.

Há um acontecimento nesse filme, que um dos personagens – o pai de uma moça que está se casando com um rapaz, que é o artista principal – nós vamos descobrir rapidamente, no processo do filme, que aquele pai, que é um homem miliardário, tem uma relação incestuosa com a filha. Nós tomamos um susto quando descobrimos isso – ele tem uma relação incestuosa com a filha. E ele vai usar a seguinte expressão: “O que é meu, eu não dou para ninguém!” Ele diz isso num jantar em família, com o noivo presente. Mas, na seqüência seguinte é ela, a filha dele, se casando com o tal sujeito. Em seguida, vai haver uma festa no jardim, na mansão da família. Aparece o jardim, onde a festa do casamento está se processando. A câmera vai, à distancia, sem zoom, fixa o pai – o tal cara miliardário – que está numa janela longa onde aparece o corpo dele inteiro, e ele está parado, [ereto], nessa posição, fixa, olhando para a câmera. O que está acontecendo exatamente ali? Está havendo uma situação … e dentro daquela situação há um conflito. O pai não concorda com a situação; e o rapaz que está casando com a filha, [encontra-se] na situação que ele quer. Então, aquele pai começa a observar a situação. Na observação que ele faz – é o casamento, a festa de casamento está se processando no jardim – ele vai se envenenando . Aquela situação vai envenenando o pai. Vai envenenando a tal ponto que ele sai de dentro da mansão, vai para o jardim, começa a fazer um discurso, de repente puxa um revólver, mata a filha, dá um tiro no rapaz e se suicida.

– O que significa isso?

O cinema realista pressupõe dois tipos de ação: uma ação explosiva e uma ação retardada . A ação explosiva é para modificar a situação; e a ação retardada é uma ação que permite que a situação permaneça. (Vocês conseguiram entender?)
Então, o que está acontecendo na definição que estou dando da arte realista? A arte realista se constitui por esse par: AÇÃO e SITUAÇÃO.

– O que é a ação? A ação é o comportamento do personagem – que é um comportamento regulado pelos sentimentos e pelas emoções . Ou seja, o comportamento se altera – se regula e se desregula – exatamente pelas emoções e pelos sentimentos que se infiltram no comportamento.

Por exemplo: houve um momento em que o Rodrigo começou a beber. O que foi isso? O comportamento dele começou a se desregular pelos sentimentos e pelas emoções.

Então, o que estou dizendo pra vocês é que a arte realista se marca por isso: a ação dos personagens numa situação dada. “Essa situação pode se modificar explosivamente, no momento em que o comportamento de um determinado personagem é de tal forma envenenado, que ele modifica aquela situação. (Vamos parar aqui.)

Então, arte realista = ação e situação .

– O que faz o personagem na arte realista?  (Nós temos que marcar isso definitivamente, ouviu C–?) O que o personagem faz é comportar-se . Ele tem um comportamento. Esse comportamento tem dois objetivos: manter a situação ou destruir a situação. São os comportamentos que ele tem. Como artista da arte realista, o que ele faz é comportar-se .

(Tudo bem? Depois nós vamos nos aprofundar nisso).

Agora vai surgir a ARTE NATURALISTA. A arte naturalista se origina na arte realista. Mas, quando você encontrar a arte naturalista, o personagem naturalista não tem comportamento – como tem o personagem da arte realista. No naturalismo o comportamento torna-se COMPORTAMENTO PERVERSO . Ou seja, o personagem naturalista pratica necrofilia , sadismo , masoquismo , comete predações , crimes insuportáveis , ele tem uma violência intolerável … Então, a diferença do realismo para o naturalismo é que no realismo há comportamento ; e no naturalismo adiciona-se à idéia de comportamento a idéia PERVERSÃO. (Vocês conseguiram entender isso?) Eu adicionei a idéia de perversão à idéia de comportamento. Eu estou dizendo que no realismo não há comportamento perverso. O comportamento perverso é um componente da arte naturalista. Por isso, o personagem naturalista é de uma perversão assustadora! Ele faz práticas necrofílicas, de sadismo, de predação, de destruição… Não quer dizer que não existam crimes realistas, que não existam ações maldosas no realismo. Só que o comportamento do realismo e o comportamento do naturalismo se distinguem pela categoria perversão. Esse é um ponto de partida para nós. Eu não estou concluindo nada. Estou começando a elaborar uma compreensão do que seria a diferença da arte realista e da arte naturalista. Eu estou acrescentando ao naturalismo a idéia de perversão – que se acrescenta à idéia de comportamento.

O que nós vamos fazer na próxima aula? Na próxima aula nós vamos estudar o comportamento . Por que vamos estudar o comportamento? Porque é o fundamento da arte da ação, da arte realista. Nós vamos estudar o que é o comportamento , nós vamos estudar o que é a ação , nós vamos estudar o que é a situação , para compreender o que se passa quando surge o naturalismo. Então, naturalismo não é uma arte que se opõe ao realismo. O naturalismo é uma arte que se acrescenta ao realismo se acrescenta: torna as tintas realistas mais fortes . O personagem naturalista traz com ele uma perversão que o (atenção!) desumaniza: ele se torna como que um “bicho-homem”. Ele vai se tornar um bicho-homem! Ele é cheio de idéias fixas; ele tem uma perversão dentro dele. Por isso, o ator realista e o ator naturalista não têm uma prática semelhante: porque um tem comportamento e ações dentro de uma situação; enquanto que o outro, o personagem naturalista, não quer manter uma situação, nem explodir uma situação o que ele quer é exaurir a situação. Por exemplo, se a situação é um fenômeno que se dá dentro de uma casa, o que o personagem naturalista quer é chutar aquela casa, tomar tudo pra ele, destruir tudo que está ali dentro!
Então, vocês vão ter que conhecer esse personagem.

Alª: Eu sempre ouvi falar que o naturalista era o ator que não representava…  que fazia, como dizem…  muitos atores de televisão…
Alº.: —?—–
Alª.: Exatamente! Por isso que eu estou estranhando…
Cl.: Exatamente. Você está estranhando apenas pelas palavras.
Alª.: É porque… sempre ouvi falar… Ah! não, ator naturalista é aquele que, na televisão, que não representa, que faz como se estivesse no sofá de casa, entendeu?
Cl.: Nós não vamos pensar assim, ouviu C–?  O que nós vamos fazer… Porque, por exemplo, isso daqui não tem o menor problema para o pessoal de música, o pessoal de física, o pessoal de literatura…, porque em todos os níveis esta questão vai aparecer. Esta questão aparece na música, aparece no cinema, aparece na literatura… Aparece em todos os lugares. O que nós vamos fazer inicialmente é dar conta do realismo e do naturalismo – é esse o nosso grande trabalho inicial. Nós vamos dar conta disso. Nós vamos perseguir isso aqui, de qualquer maneira! Eu vou fazer uma perseguição inicialmente aparentemente lenta, mas é mentira, eu não ralento as minhas aulas; as minhas aulas não têm ralentação, as minhas aulas são profundamente velozes … Elas são velozes e a velocidade delas faz parte da minha estimulação do meu aluno, porque o nosso tempo é um tempo veloz, não adianta ficar parado, porque senão não vai pra frente. Então, nós vamos começar o nosso procedimento confrontando realismo e naturalismo. Mas de uma maneira exaltante e exaustiva .

Então, neste instante, as coisas estão com uma simplicidade muito grande. Eu estou explicando o realismo como sendo uma ação dentro de uma situação. Nessa situação, o comportamento do personagem realista ou se mantém naquela situação, aquela situação é suave pra ele, ou a situação é hostil e ele tenta explodir aquela situação. Então, nós vamos colocar duas figuras, já definitivas: a ação pode ser explosiva ou retardada. E nós vamos pensar isso juntos! Vamos pensar juntos.

Por que estou fazendo isso? Aparentemente estou me dirigindo à C–, ao F–, ao A–… quem mais tem aqui? Os três… ela, o M– Aparentemente! Não estou me dirigindo só a eles: eu estou usando a arte cênica como exemplo! Por que eu estou usando a arte cênica como exemplo? Ela é um ótimo exemplo, porque ela é um exemplo mais genérico. Por exemplo, se eu for utilizar a literatura, ela fica muito presa, fica muito difícil para os outros entenderem.

Aluno: Eu ia falar do Émile Zola —- naturalismo. Cabe, essa…
Cláudio: Émile Zola é naturalismo! Cabe perfeitamente! Integralmente!

O que nós vamos marcar nessa distinção – e com isso eu também consigo produzir, numa linguagem chula, tesão em alguns; numa linguagem coerente: vou produzir neles uma sedução , uma atração . Eu vou começar a atrair , a produzir um processo de atração , porque estou começando a trabalhar naquilo que, por exemplo, exemplo só… é a obra de C– e a obra de F– Eu estou trabalhando na arte… realista. Como é que trabalha o ator realista. Por exemplo, se você vai trabalhar numa peça da Virginia Woolf – Orlando , que seja, Orlando que seja. O diretor que não consegue distinguir o que seja uma arte realista de uma arte naturalista ou de outras linhas de arte, ele naturalmente vai fazer do seu ator, na Virginia Woolf, um ator realista. E vai se dar mal… vai se dar mal… porque não é isso!

Então, o que nós vamos começar a fazer é entender o que vem a ser comportamento . Esse é o nosso primeiro procedimento: trabalhar em cima de comportamento; e eu aciono – para produzir uma atração, uso até o exemplo, – a idéia de comportamento perverso.

Então, aqueles que vierem no próximo domingo irão ver o comportamento num filme realista clássico, do Arthur Penn – chamado , em inglês, Four Friends, com uma trilha musical magnífica – [inclusive Georgia, cantada pelo Ray Charles], e também o fundo musical do Dvorak – que nós vamos conhecer, antes de ver o filme. Nós vamos ouvir a música… Por que ouvir a música? Por quê? Não se pode pensar cinema sem entender de música. É impossível, é um equívoco pensar-se que se pode fazer isso! Nós vamos trabalhar com a música e com as imagens – com o ótico e com o sonoro . Então, nós vamos ver esse filme, Amigos para sempre , que é um filme realista. Vamos ver, vamos examinar, eu vou dar aula, vou apontar…  Em seguida nós vamos ver O Criado, que é um filme naturalista. (Certo?) No Criado nós vamos encontrar o Dick Bogard, que é provavelmente um ator sofrido demais – porque ele fazia Losey e Visconti. Losey é um artista naturalista e o Visconti é um artista do tempo puro. E o Dick Bogard entrava nos dois… com um brilhantismo assustador!…

Então, essa é a maneira que eu vou desencadear a aula, é uma maneira que eu seduzo vocês à maneira do demiurgo platônico, porque a função do demiurgo platônico é uma só: colonizar – que não é o meu caso; por enquanto , persuadir – ainda é o meu caso. Ou seja, o que é? Atrair – fazer vocês começarem a compreender que nada nesse mundo se dá sem a prática do pensamento. Se existe uma arte realista, é porque o pensamento a produziu . Então, é esse o procedimento que nós vamos fazer. Nós vamos começar a avaliar o que é o comportamento realista, o que é ação realista…

Eu preciso que todo mundo venha… Eu preciso que todo mundo venha! Se alguém disser assim: eu não posso vir…
Alª.: Pode ser assim umas 10 h.?
Cl.: Pode ser até 3 horas da manhã. Pra mim, eu não tenho hora , não tenho hora nenhuma . Eu não tenho hora, não tenho essas questões… Essas questões não atrapalham o meu trabalho, pelo contrário, exaltam o meu trabalho… E vocês vão começar a entrar nisso, cada um para formar a sua independência! Eu não quero, como por exemplo, num curso que eu estava dando, um aluno virar-se pra mim e perguntar: “Cláudio, o Kieslowski é realista, naturalista, afetivo?…” Eu não sei, meu filho, você que vai ter que decidir! Sou eu que vou decidir? Se você entender a minha aula, você vai saber o que fazer! Eu quero que vocês comecem a entender o que vocês estão fazendo!

Nós vamos entender! Nós vamos fazer um trabalho de uma beleza excepcional! E nosso trabalho vai começar com o filme…

(É praticamente o que eu tinha a dizer pra vocês hoje.)

E aí, P–? (Tá?) P–, L– e o Po- trabalham com música… Toda essa questão também está dentro da música.
Al.: Está na literatura…
Cl.: Está em todos os lugares! Está em todos os lugares! Porque nós vamos começar a entender uma coisa incrível… A vida é poderosíssima; mas ela não tem muitas vias, são poucas , são poucas … são poucas as linhas que a vida pode produzir! E essas pequenas linhas – que a vida pode produzir – nós vamos entender inteiramente… perfeitamente !

E o meu procedimento de escolher o confronto da arte realista com                             a arte naturalista é porque a arte naturalista (foi talvez no que eu surpreendi a C–) acrescenta à idéia de comportamento a idéia de perversão .

Alª.: —- interpretação naturalista aquela interpretação característica de televisão —-
Cl.: Qual é a interpretação característica?
Alª.: Eles confundem naturalismo com ser natural … espontâneo…
Alº.: Isso se chama – no nosso meio [no meio teatral] – interpretação naturalista .
Cl.: A espontaneidade, não é? Quer dizer, o ator realista não teria espontaneidade…
Alº.: Olha, ele teria…   Mas…  —- usou mal a palavra…
Cl.: É preciso ver com vocês.
Alª.: É a não-representação.
Cl.: O naturalismo não representaria…
Alº: Supõe-se que não, mas é, num certo sentido.
Cl.: Vamos ver o que é isso. Vamos ver. Vamos começar a fazer esse trabalho domingo. Não interessa a hora, pode ser qualquer hora, domingo nós começamos a trabalhar.

O que eu quero… vamos só fazer uma marca. Olha o que eu vou dizer, prestem atenção ao que eu vou dizer. Não precisa tomar isso em toda a profundidade, pode escapar toda a profundidade, não faz mal. O comportamento . Essa figura chamada comportamento foi esgotada pela psicologia behaviorista, no século XX. Ela estudou tudo sobre comportamento. Então, onde houver um comportamento há necessariamente um ego. (Prestem atenção!) Quem se comporta? O ego: o ego se comporta. Então, é preciso começar a entender o que eu falei quando eu disse: F– é real e Rodrigo é imaginário . (Certo?)
Porque (…)

(fim de fita)

Parte II

(…)

É, mas é outra questão! O que eu estou falando é dos deuses em relação ao personagem… Não mais comportamento e ação, mas introduzir afetos, por exemplo. Se você quiser produzir uma obra artística, teatral – pouco importa – que seja afetiva, nessa obra não pode haver personagem se comportando. Então você vê que essas…

Alª: Eu quero saber por que, no caso dele, você falou [que] o Rodrigo não é real?

Cl.: O que eu digo que o Rodrigo não é real é no seguinte sentido, você pode fazer a seguinte confrontação: você diz assim – existe um Rodrigo e existe um F–; existe uma Alice e existe uma C–. É nítido, o que eu estou dizendo; é claro, o que estou dizendo. Então, todas as ações do Rodrigo são ações imaginárias. Isso é uma marca do realismo. Eu sei que, nesse momento, pra vocês, isso é difícil! Mas é a marca do realismo, o realismo traz – como marca – a ação imaginária numa situação fictícia. É a marca dele! É a marca dele! É a marca desse mundo realista… Por isso , quando você pega um cinema do Tarkovsky (não sei se alguém já viu o cinema do Tarkovsky), ele é um cinema completamente diferente do cinema realista. O cinema realista é o cinema do Spielberg, por exemplo. É um cinema entupido de planos. Vocês viram o Indiana Jones ? Esse filme, por exemplo, é entupido de planos. Quando você pega um Tarkovsky, é um plano seqüência de uma hora ! Uma hora! Os atores estão em frente àquela máquina parada durante uma hora . É evidente que houve um procedimento diferenciado. É evidente que o personagem não é do mesmo estilo.

Então, é exatamente isso que nós temos, pra começar a fazer esse percurso. Para entender o pensamento, para entender corpo, entender intensidade, entender todas as questões que nós vamos levantar – o processo que eu vou utilizar é esse. É esse. Nós vamos começar exatamente na arte cênica.

Nós vamos entrar nessa arte cênica – e ver o que vai acontecer em função disso daqui. Eu acho que todo mundo pode estar plenamente de acordo com isso. Não tem o menor problema…

Eu estou dizendo pra vocês que essa questão da arte se envolve também com a vida. Agora eu vou dizer uma coisa muito difícil! Se por acaso eu transpusesse a arte realista para a filosofia, eu seria aristotélico; se eu transpusesse a arte naturalista para a filosofia, eu seria pré-socrático. Essas coisas vocês conhecem menos, mas vocês vão passar a conhecer que esses procedimentos estão em todas as linhas da vida. (Foi claro o que eu falei? P–?… Tá?). Então, eu acho que é só. É só. Olha o que eu estou fazendo nessa aula: eu não estou, em momento nenhum, preocupado em dar uma aula bonita pra vocês. Eu estou preocupado em fazer uma… EXPLOSÃO ÉTICA aqui dentro, um movimento ético aqui dentro. E ética – o que eu chamo de ética – é modo de vida e forma de arte . Isso que é ética! Qual é o seu modo de vida e como esse seu modo de vida se associa com sua prática artística! E, prática artística, não é fazer música, não é fazer isso, não é fazer aquilo… é também um  modo de vida. De que maneira eu vou construir essa única vida que eu tenho. É isso. Ponto. Eu não tenho mais o que dizer! Perguntas… se vocês quiserem fazer alguma.

Na música… o que nós vamos fazer?

.: Eu não posso nem dizer pra você uma resposta precisa. O que eu posso dizer pra você, é que se nós formos começar a percorrer a música , nós vamos encontrar coisas surpreendentes como, por exemplo, o Olivier Messiaen dividindo a música em rítmica e não-rítmica . E dizendo na minha cara que o jazz – que eu amo desde os dois anos de idade tem uma finalidade: apaziguar as paixões, ele diz isso! Talvez ele possa atenuar um pouco na frente. E o ritmo , não. No ritmo… o objetivo é apaziguar nada. O ritmo, diz ele, é uma produção da própria natureza, enquanto que as músicas não rítmicas são originárias no orgânico. Nós vamos afirmar isso daqui sem estudar? Não. Nós vamos percorrer isso. Porque eu tenho exemplos vivos dentro desta sala – que todas essas aulas geram conseqüências produtivas … geram conseqüências produtivas, geram produções . Eu consegui uma coisa muito nova hoje. Eu preocupei a C–.
(Riso…) —–
Porque nós vamos começar a pensar se, realmente, na questão do ator – se é possível pensar um ator que seja simultaneamente um pensador. Eu acho que sim. Não vou falar mais nada.

(Tá bom, P–? F–? Entenderam?)

Al.: —

Cl.: E vai para o gabinete do psicanalista e vai ficar, interminável, lá dentro, não é? Não tem jeito. É o sentimento. Então, tem que produzir alguma coisa superior para poder viver. A arte é – ao mesmo tempo – um modo de vida.

Al.: Bom, tem que decidir o horário de domingo…
Cl.: Decidir o horário… Horário… Para mim não há horário.  Eu preciso desses dois filmes vistos… Eu preciso que esses dois filmes sejam vistos. São duas obras primas do cinema. Eu preciso que eles sejam vistos – pra a gente começar a trabalhar. Vamos começar a entender essas co
Aluno: Pode marcar então, de repente…

***

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